A QUARESMA. TEMPO DE PENITÊNCIA – O pecado é pessoal. Sinceridade para reconhecermos os nossos erros e fraquezas. Necessidade da penitência. – O pecado pessoal produz efeitos nos outros. Reparar pelos pecados do mundo. Penitência e Comunhão dos Santos. – Penitência na vida quotidiana, no serviço às pessoas que estão ao nosso lado.
I. A EFICÁCIA da autêntica penitência, que é a conversão do coração a Deus, pode perder-se se se cai na tentação, que não é só de épocas remotas, de tentar esquecer que o pecado é pessoal. Na primeira leitura da Missa de hoje, o profeta Ezequiel adverte os judeus do seu tempo de que não esqueçam a grande lição do desterro, pois encaravam-no como algo inevitável, gerado pelos pecados cometidos antigamente por outros. O profeta declara que esse castigo é consequência dos pecados actuais de cada indivíduo. Através das suas palavras, o Espírito Santo fala-nos de uma responsabilidade individual e, portanto, de uma penitência e de uma salvação pessoais. Assim diz o Senhor: O pecador deve perecer. O filho não responderá pelas faltas do pai nem o pai pelas faltas do filho. É ao justo que se imputará a sua justiça e ao mau a sua malícia1. Deus quer que o pecador se converta e viva2, mas este deve cooperar com o arrependimento e com as obras de penitência. “No seu sentido próprio e verdadeiro, o pecado – diz João Paulo II – é sempre um ato da pessoa, porque é um ato de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade”3. Descarregar o homem dessa responsabilidade “seria obliterar a dignidade e a liberdade da pessoa, que também se revelam – se bem que negativa e desastrosamente – nessa responsabilidade pelo pecado cometido. Por isso, em todos e em cada um dos homens, não há nada tão pessoal e intransferível como o mérito da virtude ou a responsabilidade da culpa”4. Por isso, é uma graça do Senhor não deixarmos de arrepender-nos dos nossos pecados passados nem mascararmos os presentes, mesmo que não passem de imperfeições. Que também nós possamos dizer: Eu reconheço a minha iniqüidade e o meu pecado está sempre diante de mim5. É verdade que um dia confessamos as nossas culpas e o Senhor nos disse: Vai e não tornes a pecar6. Mas os pecados deixam um vestígio na alma. “Perdoada a culpa, permanecem as relíquias do pecado, disposições causadas pelos atos anteriores, embora fiquem debilitadas e diminuídas, de maneira que não dominam o homem e permanecem mais em forma de disposição que de hábito”7. Além disso, existem pecados e faltas que não chegamos a perceber por falta de espírito de exame, por falta de delicadeza de consciência... São como más raízes que ficaram na alma e que é necessário arrancar mediante a penitência para impedir que produzam frutos amargos. São, pois, muitos os motivos que temos para fazer penitência neste tempo da Quaresma, e devemos concretizá-la em pequenas coisas: em mortificar os nossos gostos nas refeições – em viver a abstinência que a Igreja manda –, em ser pontuais, em vigiar a imaginação... E também em procurar, com o conselho do diretor espiritual, do confessor, outros sacrifícios de maior importância, que nos ajudem a purificar a alma e a reparar os pecados próprios e alheios. II. AINDA QUE O PECADO seja sempre uma ofensa pessoal a Deus, não deixa de produzir efeitos nos demais homens. Para bem ou para mal, estamos sempre influindo naqueles que estão ao nosso lado, na Igreja e no mundo, e não apenas pelo bom ou mau exemplo que lhes damos ou pelos resultados directos das nossas acções. “Esta é a outra face daquela solidariedade que, em nível religioso, se desenvolve no profundo e magnífico mistério da Comunhão dos Santos, graças à qual se pode dizer que «cada alma que se eleva, eleva o mundo». “A esta lei da elevação corresponde, infelizmente, a lei da descida, de tal modo que se pode falar de uma comunhão do pecado, em virtude da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado rebaixa a Igreja e, de certa maneira, o mundo inteiro. Por outras palavras, não há pecado algum, mesmo o mais íntimo e secreto, o mais estritamente individual, que afecte exclusivamente aquele que o comete. Todo o pecado repercute com maior ou menor intensidade, com maior ou menor dano, em toda a estrutura eclesial e em toda a família humana”8. O Senhor pede-nos que sejamos motivo de alegria e luz para toda a Igreja. No meio do nosso trabalho e das nossas tarefas, ser-nos-á de grande ajuda pensar nos outros, saber que somos apoio – também mediante a penitência – para todo o Corpo Místico de Cristo, e em especial para aqueles que, ao longo da vida, o Senhor foi colocando ao nosso lado: “Se sentires a Comunhão dos Santos – se a viveres –, serás de bom grado um homem penitente. – E compreenderás que a penitência égaudium etsi laboriosum – alegria, embora trabalhosa. E te sentirás «aliado» de todas as almas penitentes que foram, são e serão”9. “Terás mais facilidade em cumprir o teu dever, se pensares na ajuda que te prestam os teus irmãos e na que deixas de prestar-lhes se não és fiel”10. A penitência que o Senhor nos pede, como cristãos que vivem no meio do mundo, deve ser discreta, alegre..., uma penitência que quer permanecer inadvertida, mas que não deixa de traduzir-se em actos concretos. Além disso, não faz mal que vez por outra se percebam as nossas penitências. “Se foram testemunhas das tuas fraquezas e misérias, que importa que o sejam da tua penitência?”11 III. UMA PENITÊNCIA muito agradável a Deus é aquela que se manifesta em actos de caridade e que tende a facilitar aos outros o caminho que conduz a Deus, tornando-o mais amável. No Evangelho da Missa de hoje, o Senhor nos diz: Se estás para fazer a tua oferenda diante do altar e te lembras de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão: só então vem fazer a tua oferenda12. As nossas oferendas ao Senhor devem caracterizar-se pela caridade: saber pedir perdão àqueles a quem ofendemos; assumir plenamente o sacrifício que supõe cuidar da formação de alguém que está sob a nossa responsabilidade; ser pacientes; saber perdoar com prontidão e generosidade... A este respeito, diz São Leão Magno: “Ainda que sempre seja necessário aplicar-se à santificação do corpo, agora sobretudo, durante os jejuns da Quaresma, deveis aperfeiçoar-vos pela prática de uma piedade mais activa. Dai esmola, que é muito eficaz para nos corrigirmos das nossas faltas; mas perdoai também as ofensas e abandonai as queixas contra aqueles que vos fizeram algum mal”13. “Perdoemos sempre, com o sorriso nos lábios. Falemos com clareza, sem rancor, quando nos parecer em consciência que devemos falar. E deixemos tudo nas mãos do nosso Pai-Deus, com um divino silêncio – Iesus autem tacebat (Mt XXVI, 63), Jesus calava-se –, se se trata de ataques pessoais, por mais brutais e indecorosos que sejam”14. Aproximemo-nos do altar de Deus sem carregar connosco o menor sentimento de inimizade ou de rancor. Pelo contrário, procuremos apresentar ao Senhor muitos actos de compreensão, de cortesia, de generosidade, de misericórdia. Assim o seguiremos pela Via-Sacra que Ele nos traçou e que o levou a deixar-se pregar na Cruz. “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34). Foi o Amor que levou Jesus ao Calvário. E já na Cruz, todos os seus gestos e todas as suas palavras são de amor, de amor sereno e forte. E nós, despedaçada de dor a alma, dizemos sinceramente a Jesus: Sou teu, e entrego-me a Ti, e prego-me na Cruz de bom grado, sendo nas encruzilhadas do mundo uma alma que se entregou a Ti, à tua glória, à Redenção, à corredenção da humanidade inteira”15. Santa Maria, nossa Mãe, ensinar-nos-á a descobrir muitas ocasiões de sermos generosos na dedicação aos que estão ao nosso lado nas tarefas de cada dia. (1) Ez 18, 21; (2) cfr. Ez 18, 23; (3) João Paulo II, Exort. Apost. Reconciliatio et paetitentia, 2-XII-1984, 16; (4) ib.; (5) Sl 50, 5; (6) cfr. Jo 8, 11; (7) São Tomás, Suma Teológica, 3, q. 86, a. 5 c.; (8) João Paulo II,op. cit.; (9) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 548; (10) ib., n. 549; (11) ib., n. 197; (12) Mt 5, 23-24; (13) São Leão Magno, Sermão 45 sobre a Quaresma; (14) São Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 72; (15) São Josemaría Escrivá, Via Sacra, XIª est.
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