O nosso afã em legislar é, como sabemos, inversamente proporcional à valorização dos efeitos práticos das leis aprovadas. A chamada agenda fracturante é disto um claro e triste exemplo: uma sucessão de processos legislativos com reserva mental, de duvidosos benefícios e evidentes prejuízos. A descoberto ficam, agora, os verdadeiros objectivos dos seus promotores: o triunfo do mais primitivo relativismo moral, através da morte formal de valores essenciais sem os quais qualquer sociedade se desumaniza perigosamente. Produziu-se um conjunto de leis fracturadas, todas problemáticas na sua aplicação, duvidosas na sua interpretação e com resultados muito diversos daqueles que se propunham alcançar.
Senão vejamos: ainda há dias, foi notícia que os juízes ignoravam a nova lei do divórcio, dois anos após a sua entrada em vigor, e continuavam a aplicar o conceito de "culpa". As mudanças essenciais da lei parecem não ter tido consequências, e os riscos para os quais magistrados e advogados alertaram revelaram-se pertinentes, assim como os argumentos do Presidente da República aquando do veto.
Já a lei que veio permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo só foi aprovada porque incorporou expressamente uma humilhante capitis diminutio: os gays podem casar-se mas não lhes é reconhecida qualquer capacidade parental. Um problema a resolver a posteriori? Uma suposta capitulação táctica? Não, apenas uma humilhação infligida pelos defensores da lei, pelos paladinos dessa igualdade inventada à pressa e pelo preço mais barato. Quantos gays e lésbicas se casaram entretanto? Pouquíssimos. Mas, como se sabe, o objectivo não era esse.
A Lei da Procriação Medicamente Assistida também sofreu do mesmo processo que escamoteia o essencial e remete para momento posterior omissões e contradições. Todos sabem que no actual estado da arte os embriões excedentários são uma consequência inultrapassável, mas o legislador preferiu nada dizer sobre a sua destruição. Este era e é o busílis da lei, e à falta de melhor solução varreu-se para debaixo do tapete. Vem agora o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, mais de quatro anos depois, propor uma espécie de eliminação administrativa dos embriões excedentários - vida humana para todos os efeitos - sem sequer cuidar de um mínimo de formalidade que a natureza da questão requer, limites precisos como recomenda a dignidade da matéria, mecanismos de certeza e segurança jurídica que previnam más práticas e abusos. Entretanto, os jornais dão conta da venda de óvulos (a lei só permite a doação), e, mesmo perante a evidência da entrevista dada pela vendedora, a inspecção vem dizer que não detectou qualquer irregularidade.
Eram já conhecidos indicadores preocupantes no que se refere ao aborto após a aprovação da lei, mas ficámos agora a saber que os resultados vão no sentido oposto do que foi propagado pelos que promoveram a liberalização e viabilizaram a lei: 50% das mulheres que fazem aborto faltam à consulta de planeamento familiar obrigatória 15 dias depois; há mulheres que fazem, no Serviço Nacional de Saúde, dois a três abortos por ano; o número de abortos aumentou de 12 mil para 18 mil, em 2008, e para 19 mil em 2009, mantendo-se a tendência em 2010.
Como se vê, a lei consagrou uma cultura de exaltação do egoísmo e da irresponsabilidade: da mulher em relação a si própria, a um terceiro cujo direito a nascer é preterido ao menor capricho e à sociedade em geral que não se revê num desmazelo militante cuja factura não quer pagar.
Fala-se agora na necessidade de corrigir as falhas destas leis, e há mesmo quem diga que é preciso coragem para o fazer. Resta saber para quê: para pôr de lado hipocrisias e oportunismos políticos e corrigir leis moldadas em equívocos, ou bastará a pequena coragem do remendo legislativo que dissolva a incomodidade das evidências e devolva a todos uma benévola sonolência?
Maria José Nogueira Pinto
(Fonte: DN online)
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