Na visita que fez a Inglaterra e à Escócia, o Papa deu algumas lições importantes.
Contrariando o clima desolador e os ainda mais desoladores protestos de alguns, a visita de Estado que Bento XVI acaba de fazer a Inglaterra e à Escócia foi um enorme sucesso. Embora apenas 5 dos 60 milhões de britânicos sejam católicos, o entusiasmo das multidões deixou os media completamente siderados.
Os tablóides de Londres publicaram entrevistas a adolescentes fascinados, com títulos como «Caído do céu». Uma jovem declarou ao News of the World: «O catolicismo inglês estava a precisar de um empurrão e esta é a nossa grande oportunidade de lhe dar um pontapé para a frente. Há muito tempo que eu não me sentia assim. O Papa devia vir cá mais vezes.»
O Papa terá indubitavelmente apreciado o carinho das multidões, mas Sua Santidade não levou consigo um medidor de aplausos, levou uma mensagem. E o primeiro-ministro britânico, David Cameron, percebeu que assim era porque, no discurso de despedida, agradeceu ao Papa o facto de ter colocado uma série
de questões importantes: «Vossa Santidade obrigou este país a acordar e a reflectir, e isso foi uma coisa excelente.»
A reflectir sobre quê?
Houve cinco temas que me impressionaram nos subtis e discretos discursos de Bento XVI.
Não se esqueçam de 1066 e de tudo o que se passou.
Até na Grã-Bretanha é fácil uma pessoa esquecer-se das ligações com o passado. Voldemort Dawkins e seus apaniguados parecem ignorar tudo o que devem a gerações de campanhas anti-papistas. O guarda-roupa é diferente, mas o guião é o mesmo.
Por seu turno, Bento XVI tem um talento especial para enquadrar historicamente as suas mensagens. Em Westminster Hall, o Papa declarou: «Os anjos que nos contemplam do alto do magnífico tecto desta veneranda sala recordam-nos a longa tradição que deu origem à democracia parlamentar britânica. Recordam-nos que Deus nos observa constantemente, para nos guiar e nos proteger. E convocam-nos a reconhecermos o contributo vital que as crenças religiosas deram e continuam a dar à vida desta nação.»
O Pontífice recordou aos seus anfitriões, uma vez e outra, que não se pode compreender a Grã-Bretanha sem a fé, a ponto de a primeira história desta nação ter sido escrita por um monge saxónico, Beda, o Venerável. «Há mais de mil anos que a mensagem cristã é parte integrante da língua, do pensamento e da cultura dos povos destas ilhas. O respeito que os vossos antepassados tinham pela verdade e pela justiça, pela misericórdia e pela caridade, foi-vos transmitido com uma fé que continua a ser uma potente força para o bem no vosso reino, para grande benefício, tanto de cristãos, como de não cristãos.»
Em suma, os valores democráticos da liberdade, da igualdade e da solidariedade têm raízes cristãs. O maior triunfo da democracia britânica no século XIX, a abolição do tráfico de escravos, ficou a dever-se ao trabalho de reformadores como William Wilberforce e David Livingstone, ambos cristãos convictos.
Em seguida, numa referência à atormentada história da sua pátria, Bento XVI recordou aos seus ouvintes que, tal como os esclavagistas, também os regimes ateus se recusaram a conceder aos judeus e aos membros dos outros povos submetidos a dignidade de seres humanos. «E enquanto reflectimos nas lições que nos ficaram dos extremismos ateus do século XX, e se essas lições dão que pensar, não esqueçamos nunca que a exclusão de Deus, da religião e da virtude da vida pública acaba sempre por conduzir a uma visão truncada do homem e da sociedade, e portanto a uma visão redutora da pessoa e do seu destino.»
O que será o futuro se o secularismo apagar a religião da vida pública?
A razão e a fé são compatíveis.
Bento XVI podia muito bem ter evitado as enormes tensões que rodeavam esta visita: hoje em dia, as beatificações são geralmente proclamadas pelos bispos locais. Mas a vida e a obra do Cardeal Newman deram-lhe a oportunidade de levar o combate contra o secularismo agressivo para o território do inimigo. Sem nunca mencionar Aquele-cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado [N.d.R.: He-Who-Must-Not-Be-Named, no Youtube, referente ao protesto de Ricahard Dawkins], o Papa esmagou a tese do mediático contestatário, segundo a qual «Não é possível passar logicamente do ateísmo para a perversidade».
Basta ter um conhecimento muito elementar da história do século XX para se demonstrar que esta asserção é completamente idiota. Mas Bento XVI contra-argumentou de forma mais eloquente:
«Mas, sem o correctivo proporcionado pela religião, a razão [...] pode tornar-se presa de distorções, como quando é manipulada pela ideologia ou aplicada de modo parcial, de um modo que não tem em conta a dignidade da pessoa humana. Foi este género de uso indevido da razão que esteve na base do tráfico de escravos e de tantos outros males sociais, entre os quais se contam as ideologias totalitárias do século XX. É por isso que afirmo que o mundo da razão e o mundo da fé - o mundo da racionalidade secular e o mundo das convicções religiosas - precisam um do outro e não devem recear envolver-se em profundo e permanente diálogo, para bem da nossa civilização.
Os jovens precisam de ideais que os elevem.
Os últimos 40 anos cobriram o idealismo e a generosidade da juventude com um pesado manto de álcool e sexo. Polly Toynbee, um dos principais membros da Comissão de Más-Vindas ao Papa e comissária do comentariado secularista britânico, exemplificou este facto num artigo recente, em que escrevia que a repressão «do sexo está no coração - e é um coração envenenado - de todos os males de praticamente todas as grandes religiões». Em suma, aquilo de que os jovens precisam é de mais sexo sem consequências.
Por seu turno, o Papa propôs aos jovens britânicos o exigente desafio de substituírem a civilização da satisfação pessoal por uma civilização do amor. «Todos os dias vos são apresentadas muitas tentações - as drogas, o dinheiro, o sexo, a pornografia, o álcool -, que o mundo vos garante que vos proporcionarão felicidade, quando a verdade é que se trata de coisas destrutivas e que causam dissensões. Há uma só coisa duradoura: o amor que Jesus Cristo tem pessoalmente por cada um de vós.»
O Papa tem uma visão da vida que - tal como a de John Henry Newman - exige um compromisso com a dignidade, a amizade, o saber e a verdade, em detrimento da busca da «existência cintilante mas superficial que é frequentemente proposta pela sociedade dos nossos tempos». Os artigos desagradáveis e impertinentes publicados nos media antes da visita constituem um lamentável contraste com o convite do Papa: apontem para o alto!
A religião tem o seu lugar na praça pública.
Não há país do mundo ocidental em que a religião esteja mais na retranca do que está na Grã-Bretanha. Mas, como salientou o primeiro-ministro, o cristianismo é um desafio: «Vossa Santidade deixou uma mensagem que não foi apenas para a Igreja Católica, foi para todos nós, para os que têm fé e para os que não têm. E o desafio consiste em metermos a mão na consciência e perguntarmos, não tanto que direitos tenho, mas que responsabilidades são as minhas; perguntarmos, não tanto o que podemos fazer por nós, mas o que podemos fazer pelos outros.»
A fé tem um papel a desempenhar na vida pública, salientou o Sumo Pontífice. A política não tem a ver só com a eficácia administrativa e o equilíbrio de interesses; tem a ver com a ética: «A política nasceu essencialmente para ser um garante da justiça e, com a justiça, da liberdade. Ora, a justiça é um valor moral, um valor religioso, pelo que a fé, a proclamação do evangelho, tem em comum com a política a questão da justiça, daqui resultando interesses comuns.»
O século XX mostrou-nos que os governos estão constantemente sujeitos à tentação da tirania. É a fé que protege os cidadãos de serem engolidos pelo Leviatã:
«Cada geração que procura fazer progredir o bem comum tem de perguntar de novo: quais são as exigências que os governos podem razoavelmente impor aos cidadãos e até que ponto chegam essas exigências? A que autoridade se pode recorrer para a resolução dos dilemas morais? São questões que nos conduzem directamente aos fundamentos éticos do discurso cívico. Se os princípios morais que sustentam o processo democrático são determinados apenas pelo consenso social, que é tudo menos sólido, a fragilidade do processo torna-se manifesta - e é aqui que reside o grande desafio para a democracia.»
O fundamento da tolerância não é o relativismo, mas o respeito.
Os críticos do Papa acusam-no de ser surdo ao diálogo, mas este fim-de-semana foram eles que não se mostraram disponíveis para dialogar. Aquele-cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado declarou a um grupo de apoiantes seus que o Papa era um «velhote lúbrico e fraudulento», «inimigo da humanidade, das crianças, dos homossexuais, das mulheres, das pessoas mais pobres do planeta, da ciência e da educação». Mas o papa do ateísmo britânico não será mesmo capaz de ter uma atitude de civismo e tolerância?
Em contraste, Bento XVI não esteve com rodeios, mas não ofendeu ninguém. Em Westminster Hall, recordou às personalidades gradas da sociedade britânica que Thomas More tinha sido martirizado por ter sido leal a Roma. Em Lambeth Palace, a residência do primaz anglicano, fez uma referência velada à ordenação de homossexuais e de mulheres e à conversão de Newman, que fora membro da Igreja Anglicana. Em Westminster Abbey, apresentou-se como sucessor de Pedro. No encontro com dirigentes muçulmanos, aludiu à ausência de liberdade religiosa nos países de maioria muçulmana. Em todas estas ocasiões, exprimiu-se com grande cortesia e respeito, sem insolência nem ironia, procurando sempre uma base comum para a promoção da dignidade humana e da liberdade religiosa.
Mais com obras do que com palavras, Bento XVI deu uma memorável lição de tolerância, que não consiste, nem em ignorar as diferenças, nem em minimizá-las como elas se não tivessem importância. O Papa mostrou que é possível ser tolerante sem ser relativista. Será por ter a certeza de que a razão acabará por triunfar que tem a coragem de dialogar?
Recomendo ao leitor que leia os discursos do Papa. Não foi em vão que MercatorNet nomeou Joseph Ratzinger um dos grandes campeões da dignidade humana.
Michael Cook*
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*Editor de MercatorNet.
Artigo no original em www.mercatornet.com
(Fonte: Aceprensa)
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