Portugal costuma ser um país pacato sem grandes conflitos e iniquidades. Mas na novela da vida nacional existe um tema em crescente recorrência: a justiça. Esta magna virtude, normalmente pacífica, interpela-nos cada vez mais a vários níveis e formas diversas.
A primeira interpelação é institucional. A decadência do sector da Justiça é hoje incontornável e central na crise social. Começou com a lenta perda de confiança popular no sistema. Preferindo a forma ao conteúdo, respeitando mais os procedimentos que a justiça, os tribunais ficaram tão morosos que a população desistiu deles. Não vale a pena recorrer à Justiça. Mas como viver em sociedade sem esse serviço básico? Se tal não bastasse, sucessivos processos mediáticos vêm cobrindo de ridículo o sector, com suspeitas, prescrições, intrigas, polémicas. É espantoso como uma instituição composta por pessoas inteligentes, mesmo superiormente inteligentes, comete autodestruição pública de forma tão sistemática.
Pior é a manifestação social da injustiça. Portugal sempre teve tendência para o corporativismo, instalação de interesses, captura dos poderes públicos. Basta um período mais longo de estabilidade e segurança para se sentirem forças poderosas distorcendo as regras. Este surto mais recente tem sido particularmente virulento. Há décadas que os ministérios estão dominados pelos grupos que deviam regular. Isto criou a situação perversa do aparelho de Estado, criado para o bem comum, constituir hoje um dos grandes geradores de desigualdade em Portugal.
Começa logo pelo sistema fiscal, enorme máquina iníqua que carrega mais sobre trabalhadores e pobres. À medida que o peso tributário incha, a disparidade agrava-se, atingindo já níveis preocupantes. Mas a própria política de justiça social é geradora de injustiça. Este resultado paradoxal vem de o Estado moderno assegurar um conjunto vasto, profundo e diversificado de direitos, garantias, regalias e serviços. Se isto é feito, com eficácia e dedicação, mas apenas numa parte, mesmo maioritária, da população, são os próprios mecanismos sociais que criam exclusão, desigualdade, injustiça.
Esta é a razão porque, por exemplo, os partidos de esquerda, que continuam a insistir nesses direitos de papel, acabam servindo o contrário do que afirmam. Enchem a boca com ideais de justiça social e apoio aos desfavorecidos, mas de facto defendem a classe média. As suas propostas dirigem-se não aos verdadeiros pobres, imigrantes, precários, excluídos, mas a sindicatos, funcionários, professores, médicos, etc., que são os seus reais eleitores.
Pior de tudo é a acção governamental, que depende directamente dos votos das corporações instaladas. Dominando a cobertura mediática e influência política, essas forças garantem direitos intocáveis. Para sobreviver nas sondagens e nas eleições, os ministros sabem que não podem confrontar os sectores e grupos profissionais que, mesmo favorecidos, são os primeiros a protestar à menor inconveniência. Não admira que os cortes caiam sempre sobre os silenciosos. O povo paga e cala.
Tudo isto sobreviveria disfarçado com crescimento económico. Mas no meio da recessão e emergência financeira, a injustiça explode em pleno dia. Os últimos meses manifestaram uma desigualdade social que Portugal há muito não sofria. Basta notar que no ano passado, em que o produto nacional caiu 2,7% e o desemprego subiu acima dos 10%, os salários reais aumentaram uns incríveis 5,2%, segundo o relatório do Banco de Portugal (quadro A.6.2., p. 214). Esta subida, a maior desde 1980, explica-se pelo ano eleitoral combinado com deflação. Além de brutal perda de competitividade, isto mostra como a crise foi excelente para os que mantiveram empregos seguros, enquanto desabava sobre desempregados, falidos, precários, mas também empresários e investidores.
Portugal costuma ser um país pacato, mas agora as injustiças estão a crescer. Como em épocas antigas, isso ameaça conflitos sérios que deixarão cicatrizes profundas. A justiça é cega mas tem a espada na mão.
João César das Neves
(Fonte: DN online)
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