A instrução judicial sobre os abusos sexuais na Igreja da Bélgica, que começou com uma espectacular busca na sede do arcebispado de Malines-Bruxelas no passado dia 24 de Junho, encontra-se neste momento sob vigilância do Delegado do Ministério Público. Assim decidiu o Ministério Público face às dúvidas sobre a proporcionalidade das medidas adoptadas pelo juiz instrutor do distrito de Bruxelas, Wim De Troy, dúvidas que crescem à medida que o tempo passa.
Primeiro, a 24 de Junho, foi o actual arcebispo de Bruxelas, Monsenhor André Leonard, quem, reconhecendo que a justiça pode intervir no caso dos abusos sexuais na Igreja, foi o primeiro a levantar dúvidas sobre a busca efectuada com métodos próprios do Código da Vinci. Esse mesmo fim-de-semana, a Child Focus, uma organização que se ocupa dos casos de crianças desaparecidas e maltratadas na Bélgica, exprimia também as suas reservas sobre a maneira como a Justiça tinha abordado o problema.
Na semana seguinte, o ministro federal da Justiça, Stefaan De Clerck, reconhecendo todavia a independência do juiz no desenrolar da instrução do caso, criticava o modo "simplesmente brutal" da busca realizada em Malines. E a 2 de Julho, mais de 250 membros da associação flamenga de médicos generalistas Domus Medica assinaram uma declaração pública queixando-se do possível dano causado às vítimas destes abusos pelo confisco indiscriminado de material na sede da comissão Adriaenssens. Na sua opinião, a busca fez-se sem ter em conta o princípio da confidencialidade que é exigida pela medicina. Criada pela Conferência Episcopal belga no ano 2000, esta Comissão gozava de um estatuto de independência face à Igreja e à Justiça e ocupava-se das queixas por abuso sexual, dando às vítimas apoio e orientação.
O direito das vítimas à confidencialidade
Existem de momento sérias dúvidas sobre a atenção que está a ser prestada às vítimas. Os membros da comissão Adriaenssens demitiram-se oficialmente a 1 de Julho. As 475 vítimas de abusos que tinham recorrido a esta comissão, e cujos dossiers se encontram nas mãos da Justiça, ignoram o tratamento que os seus casos irão receber. Ainda que a comissão já não exista, mais de cinquenta destas vítimas contactaram o presidente do referido organismo, o psiquiatra Peter Adriaenssens, à procura de apoio. Outros procuraram um advogado para as representar e defender.
Como aconteceu noutros países, também na Bélgica sucede que não se trata de casos de abusos actuais, mas sim de há muito tempo. O Ministro da Justiça, Stefaan De Clerck, informou que a grande maioria dos 475 dossiers confiscados remontam a 30, 40, e 50 anos atrás. Na Bélgica, a prescrição por delitos de pedofilia é de dez anos a partir da maior idade das vítimas. Como a grande maioria dos casos prescreveu legalmente, o ministro da Justiça pede à Igreja para encontrara alguma maneira de reparar o mal cometido: ou com sanções internas aos sacerdotes abusadores ou com indemnizações económicas.
Entre o juiz e o Delegado, ficam as vítimas
Walter Van Steenbrugge, advogado de cinco vítimas de abusos cujos dossiers foram confiscados pela equipa de instrução de Bruxelas, exprime o seu receio de que o decorrer dos acontecimentos se converta numa batalha ideológica que esqueça as vítimas pelo caminho. O advogado crê que o problema de fundo é uma luta interna entre a Lógia e a Igreja; ou entre o juiz instrutor, que ataca a Igreja e o Delegado do Ministério Público, que se revolta contra este ataque. O argumento poderia parecer maniqueísta, se não aparecesse numa sociedade como a belga, que, ainda que muito secularizada, continua a manter a sua tradicional divisão entre ambientes e instituições de inspiração livre-pensadora, católica ou socialista, desde o berço até ao túmulo.
De momento, o juiz instrutor continuará o seu trabalho. A 6 de Julho foi interrogado o arcebispo de Bruxelas, o cardeal Godfried Danneels, de 77 anos, que foi primaz da Igreja belga entre 1979 a 2009.
Mas, ao mesmo tempo, o Delegado do Ministério Público de Bruxelas investigará a forma como se realizou até agora a instrução do processo. Depois de um primeiro exame, poderá instaurar um recurso de apelação, para mudar a maneira de instruir o processo, ou inclusivamente para destituir o actual juiz de instrução dos seus poderes sobre o caso.
A Bélgica tem sido um país tradicionalmente católico, sendo essa uma das explicações não se ligar a outros países vizinhos, como a Holanda, onde o protestantismo teve grande influência, e com a qual antes da independência belga tinha partilhado a denominação de "países Baixos". Por alturas do Concílio Vaticano II, começou um processo de secularização crescente que dura até aos nossos dias.
Contudo, boa parte das estruturas sociais do país mantém, ainda que seja só de nome, a sua adscrição ao mundo católico ou ao mundo laico. Assim, existem redes paralelas de colégios, universidades, hospitais, sindicatos, mutualidades...
José Manuel de Lasala
Aceprensa
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