"Sempre que o Papa viaja fora de Itália, eu também viajo com ele no avião, juntamente com outros jornalistas! Assim, o balanço neste momento é de 65 viagens com o Papa: 51 com João Paulo II e 14 com Bento XVI." Conheça as histórias de Aura Miguel sobre o Papa Bento XVI.
Grande parte da minha vida tem sido – literalmente – uma vida “atrás do Papa”. Há 24 anos que a minha tarefa é seguir os passos do Sucessor de Pedro, como jornalista da Rádio Renascença. Isso implica ir a Roma muitas vezes, cruzar-me com o Papa e os seus mais directos colaboradores com alguma frequência, ler todos os seus discursos, homilias, encíclicas, etc. e viajar com o Santo Padre.
Sempre que o Papa viaja fora de Itália, eu também viajo com ele no avião, juntamente com outros jornalistas! Assim, o balanço neste momento é de 65 viagens com o Papa: 51 com João Paulo II e 14 com Bento XVI (neste último caso, tantas quantas as que ele fez fora de Itália, até Abril de 2010).
Para viajar com o Papa, é preciso ter uma acreditação permanente junto da Sala de Imprensa da Santa Sé – os jornalistas que têm esta acreditação são os chamados “vaticanistas”. Na prática, não somos mais de 200... mas a bordo do avião só vão uns 60 a 70 jornalistas do mundo inteiro. E são apenas os vaticanistas que podem integrar a comitiva do Papa nas viagens que ele faz (com algumas excepções pontuais).
Há sempre mais homens que mulheres a bordo (mesmo contando com as hospedeiras…) e eu sou a única portuguesa que integra o voo papal.
É neste contexto que há sempre muitas coisas para contar... algumas delas já relatadas por escrito (1).
Bento XVI retomou o hábito que João Paulo II tinha de se encontrar connosco dentro do avião, para responder a algumas questões… Na primeira vez que lhe pude fazer uma pergunta, apresentei-me:
- Santo Padre, sou jornalista da Rádio Renascença, Portugal…
E ele, interrompeu-me, para dizer:
- Já nos conhecemos há muito!...
Conheci pessoalmente o cardeal Ratzinger em 1996, quando ele veio a Fátima.
Fui esperá-lo ao aeroporto com uma certa ansiedade, porque lhe tinha pedido uma entrevista para esse mesmo dia mas, apesar da resposta ter sido positiva, não me tinham dito nem a hora, nem o sítio. A agravar os meus nervos estava o facto da Rádio Renascença já estar a anunciar para o dia seguinte de manhã, essa mesma entrevista (que ainda não estava feita...) (2)
O cardeal chegou à sala VIP, sorridente, acompanhado por uma pequena comitiva, entre os quais, Mons. Amândio Tomás, então reitor do Colégio Português. Era através dele que eu tinha metido uma “cunha” para conseguir a entrevista ao cardeal. Fui ter com ele e recordei-lhe o pedido. Mons. Tomás respondeu, porém, com a sua habitual descontracção:
- Sim, sim, o cardeal disse-me que fala consigo. Mas agora vamos para Fátima!
Foram eles e fui eu também, para Fátima, logo de seguida. Mas, quando lá cheguei, estavam a jantar. Arranjei um esquema, com tudo pronto numa salinha – gravador preparado, luzes acesas... – para quando eles saíssem, não se perder tempo com a logística. E pus-me à espreita.
Quando saíram da sala de jantar, avancei para o cardeal. Mons. Tomás apresentou-me ao Prefeito da Doutrina da Fé e eu pedi-lhe a tão desejada entrevista. Ratzinger respondeu:
- Depois, depois...
Depois?! Não pode ser, já não há tempo – pensei eu ainda perfilada diante dele.
- Sr. Cardeal, tem de ser agora!, disse-lhe sem pensar bem com quem estava a falar.
Ratzinger olhou-me com firmeza e autoridade e respondeu:
- Primeiro, vou ao Santuário rezar a Nossa Senhora!
Fiquei gelada e caí em mim.
- Com certeza, eminência!, respondi horrorizada com a perspectiva da minha insistência o ter irritado.
Resolvi, então, seguir o pequeno grupo até à Capelinha das Aparições. O cardeal ficou lá alguns minutos, concentrado a rezar e eu – tipo sombra – sempre perto deles. Quanto mais tempo passava, mais nervosa eu ficava, pois certamente começava a tornar-se tarde para os ritmos de vida austera do cardeal, (agravados pela diferença horária entre Itália e Portugal). Por isso, ali na Capelinha, aproveitei também para “meter uma cunha” a Nossa Senhora.
No regresso à Casa das Dores, onde estava alojado juntamente com o seu grupo, o cardeal foi conversando serenamente com o reitor do Colégio Português. O coração batia-me descompassado... eu já não aguentava mais: Se ele entrar e for direito aos elevadores, será a minha desgraça – pensava eu, em pânico – por isso, arrisquei tudo. Então, a uns dez passos do elevador, interrompi a conversa:
- Senhor cardeal, agora, vamos seguir sempre em frente, para uma salinha onde está o gravador...!
Silêncio.
O cardeal vira-se para Mons. Tomás e diz-lhe:
– Esta jornalista parece ser bastante insistente, não acha?
Riram-se os dois e, para meu alívio, seguiram em frente, em direcção à salinha. (3)
Desta sua visita a Portugal tenho ainda outro episódio para contar. O Padre Luís Kondor, grande entusiasta e apóstolo de Fátima e amigo pessoal do cardeal Raztinger, juntou-se à pequena comitiva.(4) Como sempre acontecia quando um cardeal vinha a Fátima, o Pe. Kondor organizava uma ida ao Carmelo de Coimbra, para um encontro com a Irmã Lúcia. Foi o que aconteceu também com o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
No dia 14 de Outubro lá foram todos para Coimbra; e eu também, como jornalista, claro. Quando saíram do Carmelo, a visita a Coimbra incluía também uma breve passagem pela Biblioteca da Universidade. Foi então que, antes de entrar para o carro, o Pe. Kondor veio ter comigo e convidou-me para almoçar com eles nesse dia, no hotel do Buçaco.
Foi inesquecível. Éramos dez pessoas, sentadas à volta de uma mesa redonda. Ratzinger, sempre bem disposto, observava mais do que falava. Mons. Clemens (5), na altura seu secretário, gostava de fazer-nos rir com as suas histórias e o próprio cardeal também alinhou na conversa com uma anedota hilariante que envolvia um católico, um judeu e um muçulmano que chegavam ao céu e falavam com São Pedro... Ainda hoje me arrependo por não ter escrito a divertida história contada pelo “guardião da fé”.
Comeu pouco e não repetiu. Não me lembro se bebeu vinho. O que reparei, sim, foi nos doces que pediu. O criado de mesa trouxe um carrinho com várias especialidades portuguesas e ele escolheu os doces mais fortes, do tipo conventual. No final do almoço, perguntei a Mons. Clemens se o cardeal gostaria de receber daqueles doces em Roma. O secretário respondeu logo que sim. Então, por duas ou três vezes, nos anos seguintes, passei eu própria a levar-lhe uns docinhos de ovos portugueses, que entreguei sempre a Mons. Clemens, no Palácio do Santo Ofício.
Ser vaticanista com este Papa é uma nova aventura.
Se João Paulo II fascinava o mundo com o seu carisma e jeito para falar às multidões e despertar para Deus, este é acutilante: desfaz as ambiguidades e confusões com uma clareza e lucidez impressionantes. A força da sua palavra e pensamento aponta o caminho e provoca a inteligência. Bento XVI é o Papa das razões. Não é por acaso que as suas três encíclicas aprofundam as razões do amor, da fé e da esperança. (6)
Quando, em 2005, foi eleito Papa, alguns consideraram que ele não viajaria tanto como João Paulo II, tendo em conta a sua idade e aspecto frágil. Mas, afinal, Bento XVI já realizou diversas viagens fora de Itália, percorreu quatro continentes (só falta a Ásia) e tem agendadas, para 2010, várias visitas pastorais – todas elas para a Europa.
No ano em que visita Portugal, vale a pena traçar – sem pretensões exaustivas, nem de síntese – algumas preocupações que Bento XVI tem manifestado nos últimos tempos e em viagens pastorais, sobretudo na Europa. Uma Europa “cansada da fé” onde Portugal se inclui e que, por isso mesmo, explica, no meu entender, a prioridade do Papa em centrar todas as suas viagens pastorais deste ano no Velho Continente.
Abril 2010
[introdução do livro "As razões de Bento XVI", da autoria da jornalista da Renascença Aura Miguel]
(1) “O segredo que conduz o Papa” (Principia, 2000) e “Porque viajas tanto?” (Lucerna, 2003)
(2) O spot chamava a atenção para o programa de informação de fim-de-semana, “Cartas na Mesa”
(3) A entrevista exclusiva foi transmitida na íntegra no referido programa da RR, no dia 12 de Outubro de 1996. Mas alguns excertos foram antecipados nessa mesma noite da entrevista, a 11 de Outubro, no programa de Informação da RR, “Edição Especial”.
(4) O Padre Luís Kondor (1928 - 2009) foi Director do Secretariado dos Pastorinhos e o Vice-postulador da causa de beatificação de Francisco e Jacinta Marto.
(5) Mons. Joseph Clemens, actualmente é bispo, secretário do Conselho Pontifício para os Leigos.
(6) Deus caritas est (2005), Spe Salvi (2007) e Caritas in Veritate (2009)
(Fonte: site Rádio Renascença)
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