Um erro de diagnóstico seguido de um episódio de negligência médica. É deste modo que Daniel Serrão, membro da Academia Pontifícia para a Vida, avalia, com os dados que tem disponíveis, o que se passou com um homem que esteve 23 anos em aparente estado de coma na Bélgica. No entanto, descobriu-se que, afinal, esteve sempre consciente e só não conseguia comunicar.
O cidadão belga, de 46 anos, esteve mais de duas décadas numa cama de hospital paralisado, mas perfeitamente consciente de tudo o que acontecia à sua volta, depois dos médicos terem erradamente concluído que se encontrava em coma.
O homem teve um grave acidente de automóvel que o deixou numa condição qualificada, na altura, como coma profundo. Os vários testes disponíveis utilizados ao longo do anos avaliaram a sua resposta visual, verbal e motora e apenas serviram para confirmar esse diagnóstico. Em 2006 acabar-se-ia por descobrir que estava errado.
Recorrendo aos mais recentes avanços tecnológicos neste domínio, o neurologista que dirige o grupo cientifico para o coma na universidade de Liége chegou à conclusão que o cérebro de Ron Houben nunca tinha deixado de funcionar.
Posteriormente, através de um computador concebido para o efeito, foi criada uma forma que permitiu ao paciente restabelecer a comunicação com o mundo exterior.
“A palavra frustração é demasiado pequena para descrever o que senti”, já disse Ron Houben.
Esta história foi conhecida através da publicação de um trabalho científico do médico que tratou o belga, que considera plausível a existência de falsos comas pelo mundo fora.
Um caso que não deixa, apenas, a opinião pública surpreendida, mas também a comunidade médica. Em declarações à Renascença, o médico Daniel Serrão que diz que “corre-se o risco de matar uma pessoa que está viva. O mais importante do ponto de vista ético é isso.
Acha-se que a pessoa, porque não comunica, está morta, no sentido cortical, isto é, tem o córtex destruído, e, portanto, só tem vida vegetativa, não vale a pena mantê-la viva, deixamos de a alimentar, deixamos de lhe dar água e ela morre”.
Para o membro da Academia Pontifícia para a Vida, “eles deveriam ter feito uma ressonância magnética para verificar quais eram as áreas cerebrais que estavam activas”.
“Eu diria que há um erro de diagnóstico no início e depois há um mau acompanhamento médico. Há negligência.
O médico tem que estar sempre na dúvida sobre se realmente o doente está em estado de coma ou se se trata de um estado vegetativo persistente, que é muitas vezes reversível. O que admira é que tenha estado mais de vinte anos assim e não tenham sido capazes de fazer as manobras que agora estão a fazer para aproveitar as funções que ele tem”, sublinha.
Desconhecimento da comunidade científica
Já para Walter Osswald, da Associação dos Médicos Católicos, este episódio prova que a comunidade médica ainda sabe muito pouco acerca da forma como deve tratar estes doentes.
“Sabemos que as pessoas em estado vegetativo persistente muitas vezes têm lágrimas e choram. Isso é interpretado, normalmente, como reflexos, não querendo dizer que há emoções. Mas nós não sabemos, de facto, se há ou não emoções. Estes doentes têm de ser tratados com atenção, carinho e cuidado, porque não sabemos, ainda, qual é a sua ligação ao mundo que os rodeia”, lembra Osswald.
Por sua vez, o neurologista Manuel Correia, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Porto, explica este caso com a evolução da medicina.
“É provável que as novas tecnologias consigam aperceber-se do funcionamento cerebral, o que, antigamente, não era possível. Existem agora múltiplas técnicas, como a ressonância magnética e a ressonância magnética funcional, que nos mostram a actividade cerebral voluntária, mesmo sem existir movimento de um braço ou de uma perna. Só com a tentativa de falar, por exemplo. O que aconteceu a este paciente foi que todas as formas de comunicação para o exterior estavam interrompidas”, explica.
(Fonte: ‘Página 1’, grupo Renascença, edição de 24.11.2009)
Sem comentários:
Enviar um comentário