É, com certeza, superficial fazer um comentário breve sobre o mais trabalhado documento deste Pontificado, após uma leitura rápida. Limitar-me-ei, se for capaz, a apresentar um canapé que, se for agradável à vista e ao paladar, abra o apetite para a refeição principal, que é a leitura e o estudo desta encíclica notável
POR RAUL DINIZ*
O tempo é sempre contingente e histórico e só uma luz mais alta lhe pode emprestar alguma visibilidade e sentido. Na sua atalaia de Profeta e Mestre, Bento XVI, uma vez mais, com uma coragem singular procura a verdade das situações. E, como é suave no falar, só depois se vê a fortaleza do dizer.
Esta encíclica é, verdadeiramente, a «Quadragesimo anno (ainda que a data tenha acabado por ser superada) da «Populorum Progressio», tal como a «Sollicitudo rei socialis» foi a sua «vigesimo anno», digamos.
Assim, a «Rerum Novarum» e a «Populorum Progressio» passam a ter honras de repetida comemoração pelo seu evidente profetismo e importância. O óxido do tempo trouxe-lhes algum embranquecimento, mas não as envelheceu no essencial.
A fé não permite atrasos, porque ultrapassa o ritmo do tempo.
O nome da encíclica justifica-se logo na introdução: «A caridade é a via mestra da Doutrina Social da Igreja» (2); podíamos dizer que é a sua originalidade evangélica, e «sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo» (3). O Papa afirma mesmo que a Doutrina Social da Igreja é «caritas in veritate in re sociali» (5). Este «princípio de reflexão» é o eixo à volta do qual vai girar o documento que terá como «critérios de juízo» a justiça e o bem comum a que se seguirão «normas e orientações para a acção», para respeitarmos terminologia consagrada da Doutrina Social da Igreja (cfr. Catecismo da Igreja Católica, Compêndio n. 509).
É muito instrutivo e oportuno, na hora presente, que se nos chame a atenção para um «caminho institucional (político) da caridade não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo (7).
A globalização, vista sobretudo como oportunidade, não podia deixar de estar presente com abundantes orientações, mas é fundamental recordar que à real interdependência dos homens e dos povos tem de corresponder uma interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano (9). Rectidão, honestidade e decência precisam-se urgentemente. Dão-se alvíssaras a quem as encontrar.
Como não agradecer que se nos recordem «os fortes laços existentes entre a ética da vida e a ética social» (15) e que se recuse uma visão prometeica do ser humano (68)?
Volta a advogar a necessidade de uma autoridade política mundial que, respeitando os princípios da subsidiariedade e da solidariedade, se oriente para o bem comum.
Dizia Pio XI que devíamos agradecer a Deus viver em tempos difíceis, porque não permitem a ninguém ser medíocre. Que os tempos são difíceis (sempre o foram) não duvido, mas trabalhosamente nos libertamos da mediocridade.
No entanto, como homem de esperança, Bento XVI recorda-nos «que o homem está constitutivamente inclinado para «ser mais» (14) e este desenvolvimento constitui uma verdadeira vocação (16).
O apelo exige uma resposta livre. «O desenvolvimento humano integral pressupõe a liberdade responsável da pessoa» (...); cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso» (17).
Na conclusão do documento emerge a figura do Pastor de almas, que nos adverte incisivamente:
«O desenvolvimento necessita cristãos com os braços levantados para Deus» (79) -sim, a crise também se resolve com oração -, perseverantes apesar «da fadiga no exaltante compromisso a favor da justiça (...), por entre êxitos e fracassos, na busca incessante de ordenamentos rectos para as realidades humanas» (78).
«O desenvolvimento implica atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmos, de acolhimento do próximo, de justiça e de paz. Tudo isto é indispensável para transformar os “corações de pedra” em “corações de carne” (Ez 36, 26), para tornar “divina” e consequentemente mais digna do homem a vida sobre a terra.»
* Raul Diniz é Professor de Comportamento Humano na Organização e Ética e Doutrina Social da Igreja na AESE – Escola de Direcção e Negócios
(Fonte: “Ver” AQUI )
Agradecimento a António Faure
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