Depois daquela tragédia imensa, muitos
—em particular na Alemanha— tomaram consciência do efeito corrosivo do medo, capaz
de degradar sociedades inteiras até abismos inimagináveis. Hitler, ou Stalin, nunca
teriam feito milhões de vítimas, sem gigantescas máquinas de funcionários subservientes.
Qual foi a responsabilidade de
cada um deles? Aparentemente, quase ninguém teve culpa. A dactilógrafa apenas escreveu
uns papéis à máquina; o carteiro apenas entregou a correspondência; o polícia
apenas cumpriu as ordens que recebeu do tribunal; o contabilista apenas tratou
de que todos recebessem pontualmente o salário; o funcionário apenas cumpriu o
horário do serviço; o maquinista do comboio apenas fez as viagens que lhe
mandaram; o guarda-freios apenas garantiu a eficiência da circulação … Cada um desempenhou
um minúsculo papel, mas o resultado foi o holocausto organizado de milhões de inocentes.
Este paradoxo fez com que muitos,
na geração posterior à Segunda Guerra Mundial, compreendessem a dimensão ética de
todas as acções humanas. Qualquer tarefa pode colaborar numa obra maravilhosa,
ou numa obra maquiavélica; não vale «ganhar a vida», esquecendo as
consequências e o contexto daquilo que se faz.
Aqui, entra o medo, como
ingrediente fundamental da desculpa colectiva. Para evitar algo desagradável, muitos
prestam-se a torcer ligeiramente a realidade e a justiça. Parece-lhes um ajuste
sem importância, ainda que a Guerra tenha mostrado que a multidão dos pequenos
desvios impõe tiranias e industrializa o mal. As pequenas cobardias produzem
estragos.
Foi neste contexto, no final da
Guerra, que nasceu o desejo, largamente partilhado pela humanidade, de proclamar
a dignidade da pessoa humana e enunciar as correspondentes exigências éticas. Até
então, muitos classificavam a moral como um tema abstracto; em face da Guerra, entenderam
que a moral é a base indispensável da vida social e da paz.
Passaram-se entretanto várias
gerações e a questão ética esmoreceu. A sociedade burguesa habitou-se a tornear
a justiça sem a rejeitar declaradamente, voltaram as pequenas cedências
justificadas pelo medo. Porque ninguém quer ser herói, todos preferem pagar um
pouco e evitar problemas.
É assim que, nos nossos dias, a
tirania avança em várias frentes. De um lado, a brutalidade do imperialismo
russo, devorando dezenas de milhar de vidas com a inconsciência moral de quem está
a jogar xadrez. Do outro lado, com a desculpa de repor a «verdade», o
sectarismo ideológico que conquista poder sem que quase ninguém se oponha.
As poderosas empresas
informáticas, a quem devemos comunicações gratuitas, informações gratuitas, filmes,
música e divertimentos gratuitos, propuseram-se controlar as notícias «verdadeiras»
e as opiniões «correctas». Há um ano, a Presidente da Comissão Europeia rejeitou
este arbítrio e declarou que os serviços informáticos disponibilizados ao
público têm de ser abertos e transparentes. Mas, na semana passada, as grandes
empresas do sector propuseram-se melhorar a «qualidade» dos artigos que circulam
nas redes e dois Comissários da União Europeia vieram saudar alegremente a
iniciativa!
Esta semana, o Ministério Público
português decidiu secundar a proposta de um Gabinete dependente da Presidência
do Conselho de Ministros para que um tribunal retire duas crianças à família,
para poderem ser sujeitas a aulas de educação sexual na escola. Pequenos percalços,
funcionários com medo, pequenas transigências, evitar problemas. Um dia, volta o
horror que serviu de inspiração à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
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