Os ventos são contrários e a embarcação avança
devagar. Finalmente, chegam a Mira e apanham um navio de Alexandria que vai
para Itália: embarcam o centurião, os soldados que levam Paulo e outros
prisioneiros e Lucas, que acompanhava Paulo. Foi Lucas quem escreveu o diário
de bordo:
«Navegando lentamente vários dias, chegámos a custo à
vista de Cnido e, porque o vento nos impedia, passámos a sotavento de Creta, por
altura de Salmona. Depois de a termos costeado com dificuldade, chegámos a um
lugar chamado Bons-Portos, perto da cidade de Laseia. Decorrido bastante tempo,
não sendo já segura a navegação (…), Paulo advertia-os: “Senhores, vejo que a
travessia vai decorrer com abalo e grave prejuízo, não só da carga e do barco,
mas também das nossas vidas”. Porém o centurião fiava-se mais no piloto e no capitão
que nas palavras de Paulo. Como o porto não fosse bom para invernar, a maior
parte foi de parecer que se continuasse, para tentar atingir Fenice, porto de
Creta abrigado dos ventos de sudoeste e de noroeste, e invernar ali. Principiando
a soprar brandamente um vento do sul, julgaram o seu plano seguro e, levantando
ferro, iam costeando Creta de mui perto. Contudo, pouco depois, desencadeou-se
sobre esta ilha um vento tempestuoso, que se chama Euroaquilão. Com o navio
arrastado sem poder resistir ao vento, deixámo-nos levar. Arrojados pela
corrente, passámos a sotavento de uma pequena ilha chamada Cauda. Com
dificuldade pudemos recolher o escaler. Depois de içado, os marinheiros
serviam-se de todos os recursos de emergência para amarrarem o navio em volta. Com
receio de ir contra a Sirte, soltou-se a âncora flutuante, indo assim ao sabor
das ondas. No dia seguinte, violentamente batidos pela tempestade, os
marinheiros alijaram a carga; ao terceiro dia lançaram ao mar, com as próprias
mãos, o aparelho do navio. Não aparecendo, durante muitos dias, nem o sol nem
as estrelas e continuando a tempestade com violência, foi-se desvanecendo toda
a esperança de salvação.
Muito tempo havia que estávamos sem comer, e então
Paulo postou-se no meio deles e disse: “Convinha, senhores, terdes seguido o
meu conselho de não sair de Creta e evitar perigos e danos. Mas agora
exorto-vos a que tenhais coragem, porque nenhum de vós perderá a vida, mas
somente o navio será destruído. Porque esta noite apareceu-me o Anjo daquele
Deus a quem pertenço e a quem sirvo (…). Portanto, coragem! (…) Temos, porém, de
bater numa ilha”. Quando chegou a décima quarta noite, indo nós baloiçados no
mar Adriático, a meio da noite, os marinheiros julgaram estar perto de terra.
Lançaram a sonda e acharam vinte braças de profundidade; um pouco adiante,
encontraram quinze. Com receio de bater nalgum recife, lançaram quatro âncoras
da popa e ficaram a suspirar que chegasse o dia. Como os marinheiros tentassem
fugir do navio e tivessem arreado o escaler ao mar, com o pretexto de irem
largar as âncoras de proa, Paulo disse ao centurião e aos soldados: “Se estes
homens não ficarem no barco, não podereis salvar-vos”. Então os soldados
cortaram o cabo do escaler e deixaram-no cair. Até ao despontar do dia, Paulo exortava
a todos que comessem alguma coisa: “Há 14 dias que estais à espera, sem comer
nada (…)”. Dito isto, tomando o pão, deu graças a Deus em presença de todos (…)
e começou a comer. Éramos, ao todo, no navio, 276 pessoas. Depois de saciados,
aliviaram o navio, lançando o trigo ao mar. Quando se fez dia, não reconheceram
a terra, mas divisaram uma enseada com a sua praia, para a qual pretendiam, se
pudessem, impelir o barco. Soltando as âncoras, deixaram-nas cair ao mar e
afrouxaram ao mesmo tempo as cordas dos lemes; depois içaram ao vento a vela do
artemão, rumo à praia. Tendo, porém embatido num baixio, com mar de ambos os
lados, fizeram o barco encalhar. A proa, enterrada, permanecia firme, mas a
popa foi-se desconjuntando com a força das vagas. Os soldados resolveram matar
os prisioneiros (…), mas o centurião impediu-os e mandou que aqueles que
soubessem nadar fossem os primeiros a lançar-se à água e alcançar terra; depois
os outros, sobre tábuas ou destroços do barco. E assim chegaram todos sãos e
salvos a terra. Já fora de perigo é que soubemos que a ilha se chamava Malta.
Os indígenas trataram-nos com invulgar humanidade, pois acenderam uma grande
fogueira junto à qual nos recolheram a todos, por causa da chuva que caía e do
frio».
O diário conta que Paulo fez coisas extraordinárias em
Malta e conclui esta parte da viagem: «Também nos cumularam de honras e, quando
embarcámos, forneceram-nos o necessário».
Ainda hoje os malteses, orgulhosos da generosidade dos
seus antepassados, todos os anos festejam o naufrágio no dia 10 de Fevereiro. Mas,
este ano, com um ingrediente especial. O Papa pediu-lhes uma ideia para toda a
Igreja viver com intensidade o Oitavário pela Unidade dos Cristãos que estamos
a celebrar (18 a 25 de Janeiro). A sugestão, inspirada numa frase deste diário
de bordo, foi: «trataram-nos com muita humanidade».
O diário de bordo pode ler-se nos capítulos 27 e 28 do
livro dos Actos dos Apóstolos.
José Maria C.S. André
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