A cena
repete-se: vou ao médico, mas o médico não vem até mim.Olho para ele, digo-lhe o
que tenho; ele não me olha, não tira os olhos do ecrã, tecla a minha informação
no sistema, no tal big data. Não conhece o big data, caro
leitor? É uma medusa de algoritmos que gere biliões de dados pessoais. É
pretensamente infalível na previsão do futuro. Sublinho o pretensamente: o big
data deu como certa a vitória de Hillary Clinton. Ou seja, o big data é
só a mais recente utopia positivista de uma longa lista de narcisos científicos. A razão que
leva uma pessoa a esconder a sua intenção de voto é a mesma razão que conduz ao
anseio por um médico empático: somos seres frágeis, temos medo, precisamos de
uma estrutura moral para encaixar os factos. Não somos, caro leitor, um mero amontoado
de tecidos orgânicos irrigados por fluidos, movidos por
milhares de reações químicas e espezinhados por bactérias devidamente
espezinhadas por químicos recomendados pelo big data.
Não, não
estou a defender o regresso à intimidade do médico de aldeia, esse amigo que
conhecia de memória todo o historial médico da família. O meu ponto é que não
pode haver médicos sem juízo moral. O médico até pode pendurar o estetoscópio
no pescoço do algoritmo, mas não pode fazer o mesmo com a consciência. A
suspensão da intuição moral, que o leva a ser brilhante no tratamento das
debilidades mecânicas do coração enquanto órgão,
transforma-o num cego quando o assunto é o coração humano enquanto metáfora
emocional. Um bom médico é alguém que faz a ponte entre o órgão e a metáfora,
entre o mundo da possibilidade material da ciência e o mundo da consciência,
entre o positivismo empirista ancorado à natureza e o juízo moral que olha para
Deus. Se o caro leitor é daqueles que acham que Deus não existe, por favor não
se amofine:
troque “Deus” por “imperativo categórico” e continue a ler.
Naquela tensão
entre matéria e moral, o big data está a levar a medicina para a desumanidade
positivista. Exemplos? Nos EUA alguns médicos exigem que colegas antieutanásia
pratiquem a eutanásia, alegando que esta é uma prática reconhecida pelo Estado,
logo todos têm de a cumprir. Repare, caro leitor, como a agenda fraturante
acaba sempre na velha intolerância autoritária. Se já é necessário nestas questões
fraturantes, o juízo moral do médico será ainda mais decisivo no futuro
próximo. A atual descoberta da unidade básica da vida (gene) é idêntica à
descoberta da unidade básica da matéria (átomo): é uma bênção e uma maldição.
Onde estão os limites éticos à engenharia genética no homem? Esta questão não
pode ser respondida pela ciência, o método científico é amoral e lida apenas
com possibilidades materiais. A ciência só nos diz se é possível encomendar um
filho geneticamente melhorado, não nos diz se é legítimo fazer essa eugenia,
não nos diz se é legítimo conceber um filho ex
nihilo. A medicina, como ciência, tem de ser amoral. O médico, como pessoa,
tem de ser um ente moral. É por isso que precisamos de médicos à moda antiga,
daqueles que liam literatura e filosofia e não apenas os abstracts dos journals.
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