A cada setembro, a agenda repete-se. Se eu colocasse aqui um resumo de setembro de 2000 ou 2015, ninguém ia dar pela diferença. Fala-se imenso do ingresso na faculdade de pessoas já adultas ou à beira da maioridade, realiza-se a enésima peça jornalística sobre praxes e ouve-se sempre algum representante destes jovens adultos a pedir uma redução das propinas. Aliás, “baixar ou acabar com propinas” e “acabar com praxes” são duas ladainhas clássicas do regime. Enfeitiçadas por estas duas palavras, “praxes” e “propinas”, que fazem lembrar RGA ou lutas contra PGA, as redacções raramente captam o verdadeiro drama de setembro, que ocorre não nas faculdades mas nas creches. “Onde é que vou colocar o meu bebé?” e, logo a seguir, “Como é que vou pagar aquilo que me pedem?” são as perguntas que assombram milhares e milhares de casais. E este carácter de assombração explica em parte o maior problema moral e político do país: a taxa de natalidade de 1.2, uma das mais baixas do mundo. Estamos a morrer ao som de uma banda sonora que substituiu o choro do bebé pelo ranger da bengala, mas setembro só fala de jovens adultos, propinas, praxes. É como se o país se resumisse ao jovem indie bebedor de gin.
O drama começa na escassez de creches e termina no preço pedido por cada bebé ou criança. O tal saque fiscal começa naquilo que a Segurança Social considera ser um agregado familiar “rico” e passível de pagar as prestações máximas nas IPSS. O resultado é dramático e seca à partida a natalidade: um casal normal de classe média paga tanto como um milionário. Na conta bancária, um filho acaba por pesar tanto como a renda da casa ou prestação da hipoteca. Quando recebem a primeira conta da creche, muitos casais percebem logo ali que têm de adiar durante muitos anos o segundo filho — que acabará por não chegar. Com esta segurança social centrada apenas no
pagamento de pensões de reforma e afastada dos casais em idade fértil, não é possível chegarmos a uma taxa de natalidade capaz de renovar as gerações.
A situação é tão absurda que chegámos a este absurdo: é mais caro ter um bebé na creche do que ter um filho quase adulto (e capaz de trabalhar) na faculdade. É um absurdo porque o país está a pensar a casa a partir do telhado. Como é óbvio, a base da sociedade são as crianças. Se não há bebés, o deserto espera-nos. Se não há bebés hoje, não há jovens a pagar propinas no futuro.
Além disso, aos 20 ou 30, a vida de um casal é mais complicada, mais confusa e menos desafogada; à partida esse desafogo é mais fácil aos 40 ou 50 anos. Todavia, é o casal mais que tem uma vida mais fácil com o filho da faculdade, pagando uma propina mais baixa do que qualquer prestação de creche. Não é isto um absurdo? Ninguém reage ao suicídio em curso? Não, não se pode reagir. Até PSD e CDS têm medo de enfrentar a narrativa da “juventude” que não quer pagar propinas, porque é essa narrativa que encaixa nas sensibilidades de uma esquerda presa no tempo.
“Baixar propinas” soa a “estado social”. “Prestação de creche” soa a “políticas de família”, logo tem ressonâncias “salazaristas”
Henrique Raposo in Expresso Diário de 16.09.2016 (seleção de imagem 'Spe Deus')
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