Enquanto a liberdade ameaçada for a dos outros e ainda fingirem que respeitam a nossa não haverá onda de indignação que pare o agressor. A cobardia mirra as comunidades. A grande França já está a mirrar.
A que raio de propósito o dr. Carlos Carreiras havia de exigir que me despisse nas praias de Cascais ou o dr. Basílio Horta de me multar em função da roupa que me apetecesse levar e passear dentro ou fora das ondas da Praia das Maçãs? Garanto que se me desse na gana mergulhar vestida não haveria edital, nem polícia municipal que me levasse a retirar a roupa em público como há poucos dias vi acontecer, numa cena degradante, a uma jovem muçulmana intimada pela polícia a retirar a t-shirt sob uma chuva de insultos de outros banhistas algures numa praia do Sul de França.
Quem decida ir mais ou menos “emburquinada” à praia tem, obviamente, direito a fazê-lo em pleno mundo livre. Seja porque a respectiva religião exige ou aconselha, para evitar olhares indiscretos (a minha só me recomenda que escolha uma fatiota modesta e tapada q.b ), ou ainda mais prosaicamente para fugir clinicamente ao olhar do Sol.
Digo isto porque vivo num país Ocidental e livre. Onde a minha moral e os bons costumes deixaram, há mais de 40 anos, de ser caso de polícia. Convenhamos que não me sinto pessoalmente muito confortável com a ostensiva nudez que povoa a maioria dos nossos espaços de veraneio, mas cabe-me a mim estrategicamente procurar onde ainda se preserva algum bom senso e sobretudo se cultiva a elegância e o bom gosto. Dito isto, sinto-me bastante bem por minha conta. Se o autarca da zona prefere biquínis ou odeia burkinis é lá com ele, mas comigo é que não é.
Não poderia, infelizmente, dizer o mesmo se vivesse em França. A da Revolução. Pois bem, os franceses herdeiros das “luzes” descobriram agora que a moral deles e os bons costumes deles mais o laicismo militante e jacobino deles é incompatível com ir vestido para a praia. Isso constitui uma horrível provocação por parte da comunidade muçulmana à comunidade local. Fica implícito que os muçulmanos deviam ganhar juízo e, tal como em Roma se deve ser romano, em França só lhes resta vestir à francesa.
A boa coexistência entre duas comunidades em aparente choque em várias regiões não passa por evitar provocações de lado a lado. A absoluta nudez pode ser escandalosa e provocatória e vista como sinal evidente de degradação Ocidental por um dos lados, mas isso não tem importância nenhuma para as autoridades locais.
Talvez uma freirinha que queira modestamente molhar as pontinhas dos pés consiga desconto na multa prevista para as mulheres muçulmanas por não ser vista como nenhuma ameaça à segurança nacional, mas apenas como um simples atentado contra a laicidade e os bons costumes. Lembram-se da proibição dos crucifixos nas salas de aula? Agora em toda a função pública mesmo ao pescoço só se passarem despercebidos e forem pequeninos. Não tarda hábitos e cabeções deixarão de poder sair à rua. Já faltou mais.
Quando ninguém repara no que só toca no vizinho é fatal que acabem a chegar à nossa porta. De mansinho é certo que virão. Já vieram. Mas continuamos a olhar para o lado preferindo não ver. Enquanto a liberdade ameaçada for a dos outros e ainda fingirem que respeitam a nossa não haverá onda de indignação que pare o agressor. A cobardia mirra as comunidades. A grande França já está a mirrar.
A polícia de costumes em certos países árabes usa varas para assinalar as partes visíveis do corpo das mulheres que acham por bem que deveriam estar tapadas, a polícia francesa usa cassetetes e armas de fogo para intimidar a remoção das peças de roupa que na brilhante opinião dos respectivos autarcas deveriam ser destapadas. Está tudo louco?
Quando a xenofobia precisa de arranjar este tipo de argumentos (libertários) para se justificar, quando a laicidade feroz esquece o mais elementar bom senso e respeito pela identidade do outro, a coisa só pode correr mal, muito mal.
As perseguições legitimam-se, assim, numa praia qualquer perdida nos arredores de Nice para acabar de vara em riste por uma qualquer milícia popular que um dia resolve tomar em mãos as funções dos zeladores da lei, da ordem, da tradição, dos bons costumes ou de outra coisa qualquer. À pesca de inimigos para humilhá-los, julgá-los e elimina-los nas praças públicas.
É verdade que a Justiça francesa já impediu a arbitrariedade numa pequena localidade do sul de França, a pedido da Liga de Direitos Humanos, suspendendo a lei que proíbe o uso do burkini. Há activistas que se ofereceram para pagar as multas. Há protestos um pouco por todo o mundo. Mas, em várias praias de França, a arbitrariedade persiste. Isso diz bem do estado de um país onde a Frente Nacional não pára de crescer. O vírus do ódio alimenta a loucura e a barbárie regressa. Começa assim.
Graça Franco (seleção de imagem 'Spe Deus')
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