Carlos de Pontes Leça, personalidade
reconhecida nas áreas da música, do bailado e do cinema musical, morreu há 15
dias (29 de Abril). Os meios de comunicação publicaram notas biográficas, mas é
natural que a notícia tenha escapado a muita gente, a não ser por alguns testemunhos
invulgares, mais pessoais. Quem era esse desconhecido, que afinal era tão
importante?
Rui Vieira Nery descreve-o como
«um homem de uma inteligência brilhante, de uma sensibilidade rara, de uma
cultura esmagadora, e ao mesmo tempo de uma modéstia discreta pouco comum em
alguém desta qualidade». Concretiza tudo isso e dá uma interpretação curiosa: «A
sua religiosidade profunda fazia-o reconhecer no cerne do processo criativo uma
presença eminente do Sagrado, e por isso tinha pela Arte, em geral, a veneração
que dedicava a tudo aquilo que encarava como manifestações de santidade».
Maria João Avillez escreveu no
«Observador»: «Há momentos de quase impossível tradução em palavras. Mesmo para
quem quase só lida com elas. A notícia da morte de Carlos Pontes Leça (...) apanhou-me
desmunida face a uma tristeza pontiaguda, vazia de palavras». Que prodígio atingiu
a Maria João Avillez? As palavras emigraram? Ela explica que a penúria é mais
radical: «Não há verbo que alcance o voo daquela alma de cristal nem adjectivos
que definam uma certa forma de beleza, uma certa forma de pureza. Era um esteta
que gostava da harmonia e a praticava e transmitia, talvez não tenha feito
outra coisa. E se há palavras, eu pelo menos não as acho».
José Tolentino de Mendonça
dedicou-lhe uma página do «Expresso», começando por se justificar: «Talvez para
a maioria dos seus contemporâneos o nome de Carlos Pontes Leça soe quase
anónimo, mesmo se ao longo de uma vida intensíssima tenha exercido funções
culturais de grande relevo...». Não transcrevo a enumeração dos cargos, nem o
impacto das suas contribuições, porque o próprio Tolentino de Mendonça acaba
por se interromper, porque quer falar de outro assunto: o currículo é notável,
«mas tinha a imensa elegância da discrição, que nele era um ritmo moral, claro,
e também a música de uma graça interior que perseguia. Era sobre isso que
gostaria de falar». E o que Tolentino de Mendonça tem a dizer é, de facto,
muito interessante, como se verá a seguir.
O tal leitor, para quem o nome
de Carlos de Pontes Leça soa quase anónimo, tem direito a uma explicação.
Porque é que eu me lembrei do Carlos?
Conhecemo-nos quando eu andava
no liceu. Tinha mais 20 anos que eu e uma grande carreira, mas tratávamo-nos
por tu. Todas as semanas, recebia-me em sua casa, para me dar uma aula sobre o
cristianismo – especificamente para mim –, que preparava com muito cuidado.
Escrevia um guião, apontava as citações. A amizade nunca mais se interrompeu:
por exemplo, eu pedia-lhe que revisse estas colaborações para o jornal e mil e
uma ajudas. O Carlos era assim com uma multidão de amigos. Dedicava-se,
acompanhava cada um no seu percurso, com tanto respeito e disponibilidade, que
muitos se sentiam inclinados a uma confiança especial. Cada história é
diferente. Bastantes, ao seu ritmo, aproximaram-se de Deus, simplesmente porque
o Carlos abria o coração e deixava os amigos espreitar. Conforme a
oportunidade, falava de Deus e, sobretudo, falava a Deus dos seus muitos
amigos. Todos os dias passava mais de uma hora a fazer oração, geralmente
diante do sacrário. O momento-chave do dia era a Missa, nem sempre à mesma
hora, porque tinha uma agenda preenchida e variável. Para que o trabalho não o
distraísse da oração, usava truques. Por exemplo, no seu gabinete da Fundação
Calouste Gulbenkian tinha uns cartões de Natal que lhe tornavam presente a
imagem de Nossa Senhora com o Menino.
O interesse dos testemunhos que
saíram na imprensa está nestas revelações de intimidade, em que transparece o
espírito do Opus Dei que ele procurava viver: a consciência de que Deus nos vê
nos pequenos instantes do dia; o traduzir a dedicação a Deus em atenção a quem
está à volta, sobretudo os mais fracos. Tolentino de Mendonça captou alguns
momentos:
«Recordo (...) o último almoço
que tivemos, há não muito tempo, e que o Carlos Pontes Leça sugeriu que fosse
no restaurante da Cinemateca. Estudou com deleite e sofisticação a ementa,
comentando-a num alvoroço de quem se preparava para um banquete, mas depois
pediu para ele o prato mais simples e frugal de todo o conjunto e que, na
verdade, mal comeu. Quando lhe chamei a atenção para o facto, anunciou-me que
se guardava para a sobremesa. O empregado repetiu o cardápio de guloseimas e o
seu encantamento era notório, e ele próprio acrescentava traços de requinte que
certamente essas iguarias conteriam, mas acabou, entre risos, por pedir apenas
um café. Não era um almoço aquilo: era um exercício de espírito. Ou, se
quisermos, era um reverente amor sem tréguas por todas as coisas esplêndidas,
onde a chama comunicante da verdade expressa o friso vivo dos seus cambiantes.
(...) O Carlos conseguia ser assim em tudo, e com uma franqueza que era o
contrário da afectação».
Outra anotação de Tolentino de Mendonça: «Uma última
nota para evocar a arte da amizade, de que ele era um mestre inigualável. (...)
Na bela definição transmitida por Matteo Ricci lê-se o seguinte: "O meu
amigo não é outro que a metade de mim mesmo. Por isso devo considerar o amigo
como a mim próprio." Sem o dizer, Carlos Pontes Leça dizia-o continuamente».
José Maria C.S. André
Spe Deus
22-V-2016
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