Quando a política se mete na família, perdem as duas. Aí o sonho revolucionário de mundo novo ameaça até a humanidade.
O nosso tempo vive na ânsia da vida ideal, sempre prometida mas negada. A atitude de fundo, celebrada em romances, filmes e conversas, é repúdio pela existência em nome de utopias. Origem e símbolo desta orientação é a libertação do antigo regime na revolução britânica de 1688, americana de 1776, francesa de 1789 e seguintes. Essas vitórias retumbantes contra ordens vetustas e injustas são sucessivamente encenadas em cada geração em novos temas. É por isso que condutas negativas de rebeldia, inconformismo e revolta são hoje estimadas, criticando-se valores de autoridade, segurança, ordem. Só que as velhas epopeias não funcionam nos complexos temas íntimos.
Nas revoluções primitivas, a questão era apenas eliminar a opressão e impor paridade nos cidadãos. Nessas lutas de classe é fácil que liberdade e igualdade andem juntas. Como a injustiça vem da privação de direitos, o derrube da opressão gera simultaneamente autonomia e equidade. Só a fraternidade, terceiro princípio da revolução, acabou sacrificada nos sangrentos tumultos.
(...) Quando a sociedade, com direitos políticos estabelecidos, passou para a área económica, ficou mais evidente a discrepância entre os três princípios. (...)
Isso cria um vazio na presente geração. Que sonhos edificar? Onde estão os tiranos a abater? Como os jovens de hoje, tão idealistas como os antigos, desprezam combates partidários ou mercantis, a luta cultural deslocou-se para questões de sexo e limites da vida. Hoje, as verdadeiras divisões sentem-se nos temas familiares e existenciais.
É curioso como esses debates mantêm obsessivamente os tons, as atitudes e os modelos das antigas lutas e revoluções. Vêem-se os conceitos, as lógicas e os métodos que os antigos aplicavam à nobreza, escravatura, pena de morte, proletariado ou racismo, utilizados em assuntos eróticos e hospitalares. O direito ao aborto e à eutanásia tomam o lugar do direito ao voto; a emancipação de mulheres ou jovens vem na vez dos escravos; o doente terminal ou o homossexual surge na posição do operário ou negro. Casamento é contrato; adopção, sociedade.
Como os problemas são novos, a reprodução simplista de técnicas não funciona. O trio liberdade, igualdade e fraternidade, que mal resistiu na revolução política e se rompeu na económica, fica anómalo na intimidade, reino do amor. Dentro da fraternidade familiar, liberdade e igualdade tomam sentidos estranhos. Por isso, divórcio, aborto ou eutanásia só retoricamente libertam; de facto, matam. Fora da metáfora não existe igualdade entre jovem e velho, homem e mulher, casamento e união de facto, pais e filhos, amor conjugal e promiscuidade, sexo e perversão.
Fazem-se prodígios de manipulação para negar evidências, mas é ridículo tentar recriar velhos mitos de progresso e revolução em campos privados, naturais e imutáveis. A família é o que sempre foi e será. Ela constitui o verdadeiro mundo sempre novo.
João César das Neves in DN online AQUI
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