Faz este Domingo um ano, fui apanhado no meio de um ajuntamento em Ponta Delgada, fiquei a assistir e no fim enviei este «email» à família, para Lisboa:
Venho de Cantar às Estrelas. É uma festa com tradição neste arquipélago, na véspera de Nossa Senhora das Candeias (referida na liturgia mais recente como Apresentação de Nosso Senhor no Templo). Todos dizem que aqui, em Ponta Delgada, esta tradição é mais simples do que na Ribeira Grande e noutras cidades. Não posso comparar, mas conto-vos o que vi.
Grupos de populares cantam, no larguinho encantador da Câmara Municipal, umas canções com partes conhecidas e acrescentos improvisados. Alguns grupos usam trajes folclóricos, outros trazem apenas uma vara com uma estrela decorada ou arranjos com candeias com uma vela dentro. Nada de complicado, mas com um certo requinte. Em todos os grupos há instrumentos, uma dúzia de guitarras, algum acordeão, alguns ferrinhos. O número de homens e de mulheres está equilibrado e os grupos tiram partido dessas duas vozes, em contrapontos muito divertidos e em arranjos com algum virtuosismo. Cada grupo tem trinta a cinquenta pessoas.
As músicas são simples, um pouco ao estilo das canções populares de Natal, mas a execução é elegante, de modo que não nos cansamos de as ouvir. Aliás, as letras são tão engraçadas que o serão se passa muito bem. Há muita poesia, neste Cantar às Estrelas, e frequentemente há humor e também versos de enamorados.
Fiquei com pena de não ter papel e lápis para tomar apontamentos. Como é óbvio, os improvisos dos solistas não vêm nos livros, embora haja um repertório de referência, porque alguns poetas açorianos compuseram quadras para estas serenatas. O refrão é o menos engraçado, mas o mais fácil de recordar: «Hoje é véspera das Estrelas // amanhã é o seu dia // cantam os Anjos no Céu // com prazer e alegria». Tentei reconstruir uma estrofe, sem êxito: «Brilham no céu as estrelas, // formosas donzelas, // e a sua luz // entra nas janelas // ...no jardim do céu // são ...flores de luz // ... a Mãe de Jesus».
Outra septilha: «Estrela que brilha // de noite ao luar, // que maravilha pra contemplar! // Pus-me a pensar: // que grande alegria // eu poder ficar // contigo, Ó Maria».
Há quadras de rima fácil e gramática criativa: «A quadra que se cantava // era tudo de improviso // e aquela cantiga dava // o toque que era preciso». Ou esta: «Nós já vamos terminar // a brincadeira singela. // Há mais quem queira cantar // à Senhora da Estrela». Como este tipo de quadra só aparece uma vez por outra, e ninguém repete, dão um toque despretensioso ao ambiente, sem ficar chocarreiro.
No meio daquilo tudo, os grupos não se envergonham de cantar letras mais densas, quase sempre com um toque ligeiro, com uma surpresa que acrescenta humor. Posso dar este exemplo: «Amar e saber amar // amar e saber a quem // amar só a Deus no céu // não amar a mais ninguém». Isto, no meio de uma brincadeira entre o coro dos homens e o das mulheres. Dizem os homens: «A moda da gravatinha // tem sempre muito valor. // Eu por mim não trouxe a minha // porque está muito calor». Todos intercalam: «Aqui se canta, aqui se baila // aqui se joga a laranjinha» e o coro das mulheres responde ao dos homens: «Eu conheço o meu amor // pelo nó da gravatinha». Os homens não se ficam: «Pelo nó da gravatinha // pelo biquinho do pé». Todos trocam ligeiramente o refrão: «Aqui se canta, aqui se baila // aqui se joga ao balancé» e as mulheres louvam o amor das mães e os homens respondem falando do amor dos pais: «As cantigas que eu sabia // todas o vento levou; // só o nome do meu Pai // no sentido me ficou». E a picardia continua, meio a sério, meio a brincar, surpreendendo quem escuta. De repente, alguém diz à namorada: «Cruzei os meus olhos aos teus // nunca vi cruzar assim. // Tu cruzaste os teus aos meus // e ficaste igual a mim». E alguém acrescenta: «O amor apaixonado // com verdadeira paixão // e se é bem preparado // é uma satisfação».
Sem solução de continuidade, brincando com estrelas, belas, janelas, aquelas, brilhar, mirar, cantar..., aparecem galanteios bonitos a Nossa Senhora e orações. É enternecedor terminar uma quadra, cheia de palavras poéticas mas aparentemente sem sentido, até que a frase encaixa e todos os versos se percebem, ao dizer: «...Senhora das Candeias, ficar junto a ti».
O Presidente da Câmara e os vereadores assistem, no meio do público, e os grupos já sabem que, depois de actuarem, têm um chazinho à espera, no salão da Câmara. Por isso algumas letras fazem referência ao chazinho e perguntam se há bolinhos, ou saúdam a edilidade: «Viemos aqui parar // foi este o nosso ideal // para vir cumprimentar // a Câmara Municipal».
O tempo passou num instante e eu saí daquele largo a trautear «Hoje é véspera das Estrelas // amanhã é o seu dia // lá lá lá, lá lá lá».
José Maria C. S. André
«Correio dos Açores», «Verdadeiro Olhar», «ABC
Portuguese Canadian Newspaper», «Jornal da
Boa Nova», 1-II-2015
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