Ontem, o João apanhou-me ao final da tarde nos corredores do Técnico, para me dar uma informação muito importante. Ainda tenho fresca a sua defesa da tese, com que concluiu um mestrado brilhante em engenharia. Desta vez, o João não vinha expor novos avanços da investigação, mas tinha um assunto mais importante. Acabava de pedir a sua namorada em casamento e estava interessado numa ajuda, que eu já explico.
Nesta época do mundo, em que tantos projectos de felicidade deram lugar a desilusões amargas, uma pessoa pergunta-se como vai acontecer desta vez. Alguns namorados não têm toda a consciência do que pode estar em jogo, mas o João e a namorada decidiram uma coisa muito radical, que dá vertigem: o casamento deles vai ser um passo sem retorno. Se derem esse passo, toda a vida deles vai ficar decidida até ao fim, sem escapadela possível. Não vai haver segunda oportunidade, aconteça o que acontecer.
Devo explicar que o João e a namorada não se tratam de maneira descuidada, conservam um pequeno toque de cerimónia, como se se conhecessem há pouco tempo, e não querem alterar esse estilo. Várias coisas correram bem e levaram à situação actual. Começaram o namoro com a noção de que queriam algo definitivo; evitaram que a fantasia encobrisse a realidade; falaram pormenorizadamente da família que queriam constituir e de como educariam os filhos; compreenderam o papel de Deus em todo este projecto.
O João e a namorada não queriam embarcar em fantasias, queriam algo ousado, mas real. Parecia-lhes pouco interessante darem um passo definitivo em nome de uma ilusão, por não conhecerem a condição humana, com as suas grandezas e fraquezas. Portanto, não deixaram que a emoção prevalecesse. Curiosamente, não estavam à espera de descobrir que essa relação sóbria, verdadeira, era mil vezes mais deliciosa que um fogo arrebatador em que não se pode confiar. Ficaram a ganhar, sem o procurarem.
Como andou pelo estrangeiro, não é preciso explicar ao João que há milhões de raparigas no Planeta, que são mais altas, ou mais bonitas, ou cantam melhor, ou sabem mais matemática, ou falam mais línguas... O que tornou a namorada única para ele, foi vê-la como a futura mãe dos seus filhos, a mulher com quem a aventura de construir a família fazia sentido. Quanto mais falavam dos filhos, dos amigos dos filhos, do ambiente em que eles hão-de de crescer, mais o João se convencia de que era mesmo com aquela rapariga que ele queria casar. Foi algo muito surpreendente, que ultrapassou o realismo com que observavam os pequenos defeitos um do outro (porque cada um tem certas qualidades e os defeitos correspondentes) e lhes dizia «vale a pena!».
Contudo, o ponto que correu mesmo bem não foi a delicadeza com que se trataram, nem o respeito mútuo, nem a imagem de rectidão e de responsabilidade que cada um tem do outro, nem sequer a sintonia que desenvolveram em relação ao projecto que queriam construir em comum. O João e a namorada sentiram uma vertigem tão grande quando pensaram no namoro e no casamento que a sua relação com Deus se transformou. Só de pensar na responsabilidade que cada um assumia em relação ao outro! Na injustiça, se enganasse o outro por ligeireza! Assim, rezaram mais do que nunca e perguntaram a Deus se aquele era realmente o caminho certo. Com generosidade, cada um disse a Deus que queria amá-Lo acima de tudo e ser fiel à vocação. Não cabe aqui o resultado desta oração, mas um resultado evidente foi que cada um entrou na oração do outro. Também falaram disso, um com o outro, e, por um destes efeitos mágicos de que só Deus é capaz, cada um descobriu, para além de tudo o que se poderia esperar, como era importante para o outro e como Deus estava presente naquele caminho que os aproximava dEle.
O João tinha um pedido a fazer-me: que rezasse. Aceitei, com grande sentido de responsabilidade, participar neste projecto, ainda mais interessante que as investigações que ele desenvolveu na tese. Quando me perguntei interiormente se este amor ia ser fiel, lembrei-me da resposta da Madre Teresa de Calcutá: «uma família que reza unida, permanece unida».
José Maria C. S. André
«Correio dos Açores», «Verdadeiro Olhar», 26-X-2014
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