No centro do relativismo em que se vai deteriorando a identidade e capacidade dos ocidentais para sustentarem uma posição igual na coexistência em liberdade com as áreas culturais que antes dominaram em regime imperial, parece estar a questão da relação entre valor e preço, em que este serviu de eixo a um credo de mercado que conduziu à crise financeira e económica actual. Os valores são correntemente definidos como instrumentais ou fundamentais, e expressaram-se frequentemente nas coisas, incluindo as pessoas no que toca às funções que desempenham, em qualquer área de actividade, incluindo a económica. Mas não pode, ou não deve, ainda neste último caso, aceitar-se que os valores humanos podem ser secundarizados pelos instrumentais, o que significa sempre que o preço das coisas superou o valor das coisas, que, por isso, o salário não tem que ter em conta a dignidade de quem trabalha, que a medida monetária, isto é, a viabilidade da compra e venda supera todas as restantes exigências. Os países, ou alguns responsáveis, ainda antes de o credo do mercado ser assumido, também viveram como regra nessa condição quando, por exemplo, a escravatura e o transporte de escravos eram um regime legal consentido.
Foram necessárias muitas lutas, sacrifícios, pregações, e possivelmente iluminações das consciências, para entender que o dinheiro é a unidade que mede os valores instrumentais, mas não os valores morais, especialmente os que se aglutinam no conceito de dignidade humana. Da sentença de Kant segundo a qual a pessoa tem dignidade, e não preço, porque este último apenas respeita às coisas intercambiáveis, decorre que a dignidade humana evidencia-se pelo facto de que cada ser é um fenómeno que não se repete na história da humanidade. Escreveu algures Oscar Wilde que "um cínico é um homem que sabe o preço de todas as coisas mas não sabe o valor de nada". A esta percepção responde, em parte, o estado social, já que sem um poder governativo humanista a comunidade não pode funcionar com justiça. Nessa formulação cabe necessariamente o reconhecimento de que, não obstante, no que respeita às pessoas, a convergência de valores humanos e dos valores instrumentais é uma regra frequente. É notado que, se a saúde é suporte do valor essencial da vida, os cuidados médicos e medicamentos são coisas com valor monetário. O mesmo se diga do ensino, da qualificação técnica, e assim por diante. Esta realidade faz com que o Estado social seja composto, ao longo dos tempos, de uma principiologia que aponta para a possibilidade, variável com as épocas, de apoiar com valores monetários a dignidade humana, mantendo sempre a principiologia.
Existem outras formas de apoiar aquela dignidade sem valores monetários que porventura escasseiam, como o serviço ao próximo, a solidariedade, a caridade, o amor oferecido com a gratuidade da doação. Mas o que não é admissível, em face do património imaterial que deu sentido à identidade ocidental, deu fundamento à Declaração Universal dos Direitos Humanos, e espera a consagração da Declaração de Deveres que circula em busca de adesão da ONU, é que a principiologia desapareça dos textos constitucionais, à sombra de uma semântica variável, mas que lhe nega o carácter directivo e a imposição ética. Não é a pobreza que o dispensa, como está demonstrado ao longo dos tempos pelas sociedades pobres, é o facto de colocar o preço das coisas acima do valor das coisas. A decadência ocidental, e não apenas europeia, tem outras causas, designadamente a frequência com que sofreu as guerras internas e que chamou mundiais. Mas, nesta entrada do milénio, é o relativismo que a faz regredir, que divide a Europa entre países ricos e pobres, e que afecta a definição de um futuro possível. Não tem sentido propor e adoptar a responsabilidade pelas gerações futuras, e ignorar o paradigma que antecede a formulação da principiologia do Estado social, que se torna mais exigente à medida que a fronteira da pobreza avança.
Adriano Moreira
(Fonte: DN online em 19.07.2012)
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