A famosa conversão ao cristianismo [em 2008] de Magdi Allan, jornalista italiano de origem egípcia e muçulmano subdirector do 'Corriere della Sera', pôs em primeiro plano alguns equívocos no diálogo entre a Igreja e o Islão. A conversão será uma ferida na sensibilidade islâmica ou um modo de exprimir a liberdade religiosa cujo reconhecimento se exige aos países muçulmanos?
Com a solene Vigília Pascal celebrada por Bento XVI em 2010, a Semana Santa católica chegava ao seu ponto culminante. Uma semana de Paixão que começara com uma má notícia: o assassinato no Iraque do bispo caldeu católico de Mossul, Bulos Faray Raho. O próprio Bento XVI manifestou visivelmente a sua dor sobre o altar da Praça de S. Pedro, na perturbada festa do Domingo de Ramos, e na Terça-feira Santa celebrou pessoalmente exéquias pelo prelado iraquiano. Um novo episódio de dor na história da perseguição aos cristãos nalguns países islâmicos.
Poucos dias depois, o Papa derramava as águas do Baptismo sobre a cabeça do muçulmano Magdi Allam. Sucessos isolados ou imagem gráfica da relação entre o Islão e o Cristianismo?
Vias de entendimento
No passado mês de Outubro mais de uma centena de intelectuais e líderes religiosos do mundo islâmico remetiam uma carta a Bento XVI para lhe propor um renovado esforço de entendimento entre católicos e muçulmanos. No mês de Fevereiro uma delegação foi recebida em audiência pelo Santo Padre e fixou-se a continuação das conversações numa reunião de diálogo inter-religioso prevista para os próximos meses (cf. Aceprensa na edição impressa)
Um dos signatários da carta, Sergio Yabe Pallavicini, imã da mesquita alWahid de Milão, depois de ouvir a notícia da conversão de Allam comentou: "o que me surpreende é o relevo que o Vaticano deu a esta conversão". Romper-se-á então o diálogo? Por parte dos católicos é evidente que não, pois o Papa tem manifestado inumeráveis vezes a sua decisão não só de o manter mas de o intensificar num contexto de reciprocidade.
Além disso, a Santa Sé, em palavras do chefe da Sala de Imprensa ao referir-se às opiniões expostas por Allam no Corriere della Sera no dia seguinte ao da sua conversão, deixou claro que "acolher na Igreja um novo crente não significa evidentemente tomar como próprias todas as suas ideias e posições, sobretudo em temas políticos ou sociais". O porta-voz disse também que o itinerário de diálogo aberto deve continuar e "é de extrema importância não o interromper, sendo prioritário pelos episódios que podem acarretar mal entendidos".
Na parte islâmica, embora tenha havido críticas à notoriedade do baptismo de Allam, não se falou em encerrar as conversações. O professor de Cambridge Aref Ali Nayed, que também assinou a mencionada carta e é porta-voz das respectivas personalidades muçulmanas, afirmava numa entrevista a El Pais que "o diálogo é um dever que devemos perseguir pelo bem da humanidade". Portanto, há vontade de diálogo por ambas as partes e continua aberta esta via de entendimento. Mas, quais são os pontos chaves em que se devem apoiar os novos passos?
Bases para o diálogo
É necessário partir de três premissas iniciais. Em primeiro lugar, o Islão não conta com uma autoridade central e por isso o diálogo só pode travar-se com determinados grupos, como por exemplo, o mencionado grupo de 138 académicos e líderes islâmicos signatários da carta.
Por outro lado, o ordenamento vital do Islão não admite separação entre o aspecto político e religioso, e tem procedimentos muito diferentes dos que são próprios dos países com raízes cristãs. Na sua concepção os direitos humanos ficam submetidos à sharia ou lei religiosa islâmica, o que implica uma evidente inferioridade da mulher em relação ao homem, negação do direito a abandonar a fé islâmica, ausência de espaços livres de expressão próprios de uma sociedade pluralista, etc.
Uma terceira premissa para o diálogo é a clara consciência que cada uma das partes deve ter de si, da própria identidade, e dar a conhecer à outra a sua posição de um modo completo. Neste sentido convém ter em conta que se a parte cristã manifestasse algum inconveniente em apresentar a própria fé com toda a integridade, por medo a ofender ou decepcionar, não faria senão confirmar o interlocutor muçulmano na convicção de que o cristão é um crente "débil".
Bento XVI falou claramente, sobretudo num discurso à cúria romana no Natal de 2006, dos pontos sobre os quais se há-de apoiar esta aproximação: as conquistas da verdadeira razão - não a razão positivista que "exclui Deus da vida da comunidade e dos ordenamentos públicos" - face aos direitos do homem, especialmente os que se referem à liberdade religiosa e à dignidade da pessoa. Nesta linha, o Papa mostrou-se muito esperançado na carta que lhe foi enviada pelos líderes islâmicos, sobretudo por um aspecto: a atenção prestada pelos signatários ao duplo mandamento que convida a amar a Deus e ao próximo. Trata-se de uma crença comum de ambas as religiões, sobre a qual, segundo o Papa, se pode edificar um futuro entendimento.
Igrejas e mesquitas
Outro aspecto importante em que se tem insistido é o da reciprocidade, em que há acordo em linhas gerais, mas em concreto é fonte habitual de desencontros. Um exemplo significativo é o que conta o Corriere della Sera numa entrevista a Nura, uma Islamita culta convertida ao cristianismo que vive em Itália: "Hoje não existe direito à reciprocidade. O cristão que se converte ao Islão não tem medo. É como se sentisse bem protegido pelas costas. Nós, pelo contrário, temos de esconder-nos. Temos verdadeiro pavor. Eu sinto terror quando entro na igreja e escolho habitualmente uma paróquia afastada do bairro onde vivo. Estou muito atenta para não ser vista. Mas não deixo de ir à igreja, porque creio deveras".
Recentemente um país islâmico - Qatar - permitiu que se construísse um templo católico no seu território: grande novidade! Mas simultaneamente a casa real da Arábia Saudita não concedeu autorização para que existisse culto católico no país, embora se estime que haja uns oitocentos mil imigrantes católicos no seu território. E na Argélia foram encerradas várias igrejas evangélicas, com a acusação de procurar conversões ao cristianismo.
Por sua vez, os imigrantes muçulmanos em países europeus queixam-se dos obstáculos que encontram para construir mesquitas, embora frequentemente as dificuldades sejam mais de tipo económico que administrativo.
Conversão e reciprocidade
Liberdade religiosa, como direito humano inalienável, e reciprocidade entrelaçam-se no caso da conversão. É por isto que a conversão de Allam adquire uma significativa força expressiva. Assim como os muçulmanos podem convidar à conversão os cristãos no Ocidente, também os cristãos deveriam poder expor a sua fé aos muçulmanos nos países islâmicos. Mas, para já, não é assim. Segundo Shamir Kahalil Samir, jesuíta egípcio, especialista em Islamismo, "o baptismo de Magdi Allam pelo Papa não é um acto de agressão, mas uma exigência de reciprocidade. É uma provocação tranquila, que serve apenas para fazer pensar e despertar".
A conversão de um muçulmano a outra religião é considerada pelo Islão como uma traição à comunidade dos verdadeiros crentes. A liberdade religiosa concebe-se, portanto, como liberdade de aderir à verdadeira religião, que é o Islão, enquanto a passagem para outros credos está terminantemente proibida. Embora a pena derivada da transgressão desta máxima varie consoante as escolas e tradições, a corrente preponderante considera que a pena devida é a morte. Esta é a interpretação dominante dos 14 versículos do Alcorão que sancionam a apostasia, 13 dos quais falam de "um castigo muito doloroso no outro mundo" e só um deles menciona "um tormento muito doloroso neste mundo e no outro".
Uma tendência liberal minoritária entre os muçulmanos pensa, no entanto, que Maomé não pediu nunca que se matasse o apóstata, e inclusive interveio num dos casos para impedir que os seus o fizessem.
Portanto, embora o recurso à pena de morte não pareça ter um apoio suficiente nos textos do Alcorão, várias razões incitam actualmente à sua extensão nos países islâmicos. Segundo Samir Khalil Samir, professor da história da cultura árabe e de estudos islâmicos na universidade de Saint Joseph (Líbano), a razão está no chamado "despertar islâmico" que recuperou antigas afirmações históricas, animando "os que apoiam as correntes radicais a pressionar para que seja castigado com severidade quem abandonar o Islão". E o que é mais grave, num mundo global e com uma religião tão diversificada em escolas como a islâmica, as ameaças aos convertidos que abandonam o Islão estendem-se já a qualquer país.
Que acontece quando o caminho da conversão se percorre em sentido inverso? Correm riscos os que passam do cristianismo ao Islão? De novo a voz de Ali Nayed: "Creio que se uma autoridade muçulmana escolhesse um convertido fortemente anti-cristão e o exibisse numa grande cerimónia transmitida pela televisão e este publicasse além disso um artigo anti-cristão repleto de ódio, muitos cristãos ficariam aborrecidos. As pessoas convertem-se constantemente em ambas as direcções".
Um direito reconhecido no Ocidente
Mas para além de suposições, neste caso a velha máxima (no news, good news) é a melhor garantia do que acontece: nada. Nos países de raízes cristãs a possibilidade de aderir a outra religião e dela fazer pública confissão está garantida pelo clima de liberdade religiosa. De facto a doutrina do magistério católico é clara e incide na reciprocidade: "A Igreja proíbe severamente que alguém seja obrigado a abraçar a fé, ou a ela seja aliciado ou induzido por processos importunos, da mesma maneira que reivindica com firmeza o direito de ninguém ser dela afastado por vexames injustos" (Concílio Vaticano II, Decreto Ad gentes, n.13).
A posição cristã relativamente à liberdade religiosa e à conversão é portanto bem diferente da islâmica. Como explica Samir Khahlil Samir "é necessário garantir a liberdade de evangelização (tabshîr), assim como a liberdade de islamizar (da´wa). Para mim, o cristianismo é a mais bela e a mais perfeita religião, e o Islão, tendo muitas coisas boas, não é o cumprimento do projecto divino sobre o homem. Ao mesmo tempo admito que o muçulmano esteja convencido do contrário e está no seu pleno direito. Mais ainda: é seu dever! Esta é a verdadeira reciprocidade: cada um segue a sua consciência e procura iluminar cada vez mais os outros".
Miguel Ángel Sánchez de la Nieta
Aceprensa
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