(Fonte: 'Público' AQUI)
Portugal bateu um novo recorde negativo em termos de natalidade. Em 2013
nasceram 82.538 crianças, menos 7303 do que no ano anterior, segundo os números
do Instituto Nacional Doutor Ricardo Jorge. Em 2012 o país já tinha registado
um saldo natural negativo sem precedentes, com menos 17.757 nascimentos do que
mortes. Quanto aos óbitos de 2013, o Instituto Nacional de Estatística (INE)
ainda não disponibilizou números totais, mas, entre Janeiro e Outubro do ano
passado, os números evidenciavam já um saldo natural negativo de 18.232
pessoas. São dados que traduzem uma realidade que já não faz manchetes: os
portugueses têm menos filhos, o país deixou de garantir a substituição das
gerações, a população envelhece a olhos vistos. Por detrás deles, emerge,
porém, uma outra realidade que começa a preocupar pediatras e psicólogos: a
superprotecção das crianças, sobretudo dos filhos únicos, e a sua consequente
impreparação para o mundo real quando chegam a adultos.
“Quando estes miúdos chegam ao mercado de trabalho (…) exigem tarefas bem
definidas e um constante feedback (…). E é muito difícil dar-lhes um feedback
negativo sem esmagar os seus egos”, lamenta-se o empresário e escritor
norte-americano Bruce Tulgan, autor do livro Not Everyone Gets a Trophy,
citado num artigo da revista norte-americana The Atlantic.
Na publicação, não faltam patrões a denunciar as dificuldades em empregar
jovens com pouco mais de 20 anos de idade: “Eles precisam que tudo seja
soletrado e exigem ser carregados ao colo”, aponta um. Será, conclui-se no
artigo, o resultado de terem crescido sempre com alguém — os pais, mas também
professores — a monitorizar todos os aspectos da sua vida e de terem crescido como
pequenos príncipes.
Se em Portugal o fenómeno ainda não é tão visível é porque o país chegou
mais tarde ao problema demográfico. Afinal, como recorda o historiador Manuel
Loff, “os anos de 1975 a 1976 foram os de maior nupcialidade, se não de toda a
história do século XX pelo menos desde o final da II Guerra Mundial, e essa
nupcialidade gerou a mais alta natalidade também”.
Em 1976, por exemplo, nasceram 186.712 crianças. Aqui, “além do impulso
optimista típico dos períodos de libertação”, concorreram factores como o
regresso dos 250 mil soldados que estavam nas trincheiras africanas e dos cerca
de 200 mil emigrantes que tinham partido para a Europa, além dos quase meio
milhão de retornados.
Mas os efeitos da quebra de natalidade que se seguiu (“não só por causa da
crise económica, que tem no segundo resgate do FMI os piores anos, mas também
porque as mulheres começaram entretanto a aceder a meios de contracepção e a
poder programar autonomamente a sua vida”, como recorda ainda Loff) começam já
a ecoar nos consultórios portugueses.
“Posso, quero e mando”
“Nas famílias, o facto de se ter só um filho pode levar a uma concentração das
expectativas nessa criança, passando a ser, não apenas o alvo de todas as
atenções, como aquela que terá de ser tudo aquilo que os pais foram, desejavam
ser ou querem que ela seja. Por outro lado, também há uma concentração dos bens
materiais, o que pode levar a estimular, na criança, a parte narcísica e
omnipotente do ‘posso, quero e mando’ ou do ‘quero tudo, já, porque eu sou eu e
tenho direito a tudo’, que mais tarde causará graves problemas, não só à pessoa
em causa mas aos que a rodearem”, alerta o pediatra Mário Cordeiro.
O especialista ressalva, porém, que “é possível ser-se filho único e não se
ser ‘estragado’, pretensioso, arrogante, narcísico e omnipotente”. Tudo depende
“do modelo educativo e dos exemplos parentais e das figuras de referência”.
O problema incide assim na pressão que se criou em torno da parentalidade e
do lugar da criança na família. “Assistimos a uma idealização da criança que
não existia no passado, em que os filhos vinham como vinham e eram quem eram.
Hoje, estamos muito menos expostos à infância, ou seja, vive-se com muito menos
crianças à volta. E as que existem vivem em quotidianos de quase Big Brother,
sempre debaixo do olhar de adultos quase escolhidos a dedo e quase sem espaço
para uma brincadeira que não seja formatada pelos adultos e controlada pelos
adultos”, observa Vanessa Cunha, investigadora do Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa. Ora, se se recusa às crianças a possibilidade de
“aprender caindo, é natural que se caminhe para uma geração de adultos com
dificuldade em gerir adversidades”.
Pressão sobre os pais
Nada que surpreenda numa sociedade em que as famílias são cada vez mais
verticais. “Há muitos adultos, pais, tios e avós, para poucas crianças”,
descreve Vanessa Cunha. Dos 89.841 bebés nascidos em 2012, 48.766 eram
primeiros filhos. E se, de entre os bebés nascidos nesse mesmo ano, os segundos
filhos ainda eram significativos (30.499), os terceiros filhos caíam
drasticamente para os 7730.
Pior: “Não apenas ao nível das famílias há poucas crianças, como estas têm
poucos primos – os pais também já pertencem a uma geração de poucos irmãos —,
há poucas crianças nos prédios e a vida faz-se menos em ‘espírito de aldeia’,
comunitário, mas muito fechado entre quatro paredes, seja de casa, do automóvel
ou dos próprios infantários e escolas”, acrescenta Mário Cordeiro.
Quanto às razões para os casais recearem o salto para o segundo filho,
todos de acordo. “Questões financeiras e de conciliação do trabalho com a vida
familiar adiam ou levam mesmo à recusa da transição para o segundo filho”,
aponta Vanessa Cunha. Àquelas somam-se motivos latentes. “A parentalidade de per
si passou a ser um problema e a estar debaixo de uma forte normatividade.
Antigamente, ser pai ou ser mãe era algo que se aprendia com a geração anterior
e as pessoas não viviam angustiadas porque tinham dado uma palmada ao filho.
Hoje, há informação, pediatras, revistas da especialidade, psicólogos e toda
uma camada de profissionais ligados à infância que estão sempre a colocar
condições e exigências que levam as pessoas a sentirem que ser bom pai ou boa
mãe é uma missão quase impossível”, defende a socióloga. E se ao segundo filho
“as pessoas começam a relativizar tudo isso, porque percebem que face aos
mesmos inputs saem filhos diferentes, quando não se passa do primeiro
estas coisas continuam muito empoladas”.
Tome-se como exemplo o crónico problema da falta de tempo dos pais. “É algo
que na verdade sempre existiu. Dantes, as mães não se sentavam a fazer desenhos
ou pinturas com os filhos e hoje fazem-no. A diferença é que agora nas
entrevistas surgem pessoas que não querem ser pais, ou não querem partir para o
segundo filho, porque não se sentem capazes de o fazer nem se sentem preparadas
para a grande dose de sacrifício pessoal que sentem que têm que fazer em prol
da criança.”
Superprotecção
Raciocínios deste tipo seriam impensáveis sem as transformações ocorridas na
sociedade portuguesa nas últimas décadas. Manuel Loff recua até aos seus tempos
de estudante: “Acabei a 4.ª classe em 1974, numa escola masculina de bairro
camarário, onde era normal, quando vinha a Primavera, um terço dos meus colegas
faltarem porque iam trabalhar para as obras.”
E mesmo nos anos 80 a
concepção da identidade das crianças e do seu papel social ainda incluía o seu
dever de contribuir para o orçamento familiar — por exemplo, em regiões como o
Minho, onde o trabalho infantil era proporcionalmente inverso à taxa de
escolarização. “O aumento global da escolaridade, a melhoria das condições de
planeamento familiar e uma perspectiva muito diferente do papel da mulher só
depois se conjugaram para permitir que triunfasse o conceito romântico de
família, típico do século XIX, e que implica um grande investimento na educação
dos filhos como representação dos sonhos e aspirações dos pais, com estes a
serem capazes de proteger o bem-estar dos filhos mesmo que isso implique
sacrificarem o seu próprio bem-estar, até chegarmos a este extremo de
superprotecção das crianças e dos adolescentes, num mundo em que a competição é
cada vez mais dura.”
Sem querer assumir-se como
“profeta da desgraça”, Mário Cordeiro lembra que o preço a pagar pode ser mais
elevado do que se pensa. “Temos a obrigação de exigir políticas concertadas,
maior atenção à infância e uma perspectiva desta, não apenas na actualidade e
no presente, mas projectando-a no futuro. Foi o que fizeram os países mais
evoluídos, como os nórdicos, na sequência da II Grande Guerra e da fragmentação
do tecido social que esta causou.”
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