Há muitas razões para Guantánamo ser memorável. Na baía onde Cristóvão Colombo desembarcou, em 1494, está a mais antiga base americana em solo estrangeiro, por acordo de 1902 com a recém-independente República de Cuba, grata aos americanos pela ajuda na luta de autonomia face a Espanha. Após a revolução de Fidel Castro, em 1959, a unidade adquiriu importância estratégica, como única força militar em solo de um país com o qual os EUA não têm relações diplomáticas.
Os caprichos da história geraram várias situações de zonas embutidas em pleno território inimigo. Neste caso, a estranheza é dupla, pois Guantánamo constitui um pequeno pedaço americano na Cuba socialista, que, por sua vez, é há mais de 50 anos um pequeno reduto comunista no coração do capitalismo. No meio de fortes confrontos bélicos, diplomáticos e culturais é sempre difícil decidir o que fazer nessas bases avançadas. Tobruk e Dien Bien Phu foram palco de resistências heróicas; Berlim Ocidental e Hong Kong surgiram como cidades prósperas e vibrantes; Chipre e a faixa de Gaza são zonas de tensão. Aqui não foi assim. Em 2002, celebrando o centenário da base, George W. Bush fez uma escolha grotesca: criou na minúscula região americana em solo cubano... uma prisão.
A decisão controversa fez parte das ainda mais discutíveis opções de declarar "guerra" ao informe inimigo do terrorismo e proclamar como "guerra justa" as invasões do Afeganistão e do Iraque, não legitimadas pela ONU. Em breve, o presídio ganharia traços sinistros com notícias de prisões arbitrárias e tortura. Parece que a localização colocava a zona à margem dos direitos e valores que a civilização americana se orgulha de defender. Assim, a autoproclamada "terra dos livres" se cobriu de vergonha às portas do inimigo. Guantánamo passou a termo de infâmia.
Naturalmente o assunto foi central nas eleições presidenciais de 2008. Trocaram-se acusações, fizeram-se promessas, discutiu-se, analisou-se, insultou-se. Guantánamo virou símbolo. Aliás, vários símbolos, conforme a pessoa que falava. O significado era tão controverso quanto a realidade. Aquilo de que não havia dúvidas era que Guantánamo tinha de ser recordada.
Logo a 22 de Janeiro de 2009, o recém-eleito Presidente Barack Obama assinou, com pompa e circunstância, a ordem executiva para encerrar a prisão, cumprindo a solene promessa de campanha. Era apenas um pequeno passo, mas cheio de significado no momento glorioso em que o jovem Presidente iniciava nova era. Estava resolvido o problema, e não era sem tempo. Acabava a vergonha e os EUA podiam olhar de novo com honra aliados e inimigos.
Três anos depois, a prisão continua aberta. Guantánamo já não embaraça os EUA, pois não há tortura nem violação de direitos. Mas a verdade é que a promessa está por cumprir. Corre nova campanha eleitoral, que será cerrada como todas, e esta questão promete ser tema central dos debates, de novo contra o Presidente em funções que a mantém aberta e ocupada. A coisa, afinal, era mais difícil do que parecia.
Assim se acrescenta uma nova razão para lembrar Guantánamo. Já não se trata de motivos históricos, estratégicos, simbólicos ou vergonhosos. A nova razão para recordar a baía é mediática, recomendando cuidado nas promessas eleitorais. Pelo menos nas emblemáticas e fáceis de verificar. Podia dizer-se que, se tivesse prometido simplesmente normalizar as práticas prisionais sem encerrar a cadeia, Obama faria uma opção eleitoral suicida, passando ao lado do potente simbolismo da questão. O drama é que os símbolos são sempre um pau de dois bicos, como o Presidente agora percebe, vítima da mesma imagem impiedosa.
A França, como a América, está em eleições. François Hollande, o quase certo futuro presidente, pode ser franca melhoria a seguir ao medíocre Chirac e errático Sarkozy. Só que as suas promessas de rasgar o novo Tratado Europeu, atacar a banca e proibir produtos financeiros, mesmo se dão votos, serão impossíveis de realizar. Era bom que recordasse Guantánamo. A Europa precisa disso.
João César das Neves in DN online
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