Nesta coluna nunca se comentou o Acordo Ortográfico. Em tema muito específico, com reputados especialistas envolvidos em polémicas violentas, recomenda-se silêncio respeitoso. Mas ultimamente o jornal inclui no fundo do artigo a referência: "Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico", o que merece explicação.
Esta opção não implica tomada de posição na contenda. Sobre o tema, permaneço perplexo e expectante. Tenho por princípio cumprir a lei e fiz esforços sérios para aprender as novas regras. Mas confesso a dificuldade em "escrever com erros" e, existindo ainda escolha, prefiro manter a situação.
No que toca às partes em confronto, vejo erros dos dois lados. Os que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita não é a de Gil Vicente, nem sequer de Eça. O que hoje usamos vem do Formulário Ortográfico de 1911, resultado da ânsia legalista da Primeira República, cuja arrogância ingénua aspirava a regulamentar tudo. O século XX viu atribulada história de acordos na lusofonia, todos falhados (ver www.portaldalinguaportuguesa.org/acordo.php).
Os que apregoam a nova regulamentação como indispensável exageram o significado de pequenos detalhes. Existem importantes diferenças regionais em todas as línguas dominantes, sem que tal prejudique a sua influência. Basta abrir o Thesaurus do editor Word para ver 21 alternativas de Spanish, 16 de English, seis de French e duas de Portuguese convivendo pacificamente.
Em toda a questão, tenho uma única ideia clara. O projecto de regulamentação legal da ortografia é, em si mesmo, manifestação de um dos traços mais fortes da nossa cultura. Não seríamos portugueses se não gastássemos tempo e recursos numa discussão deste tipo. Apesar de alterarem a escrita, são os defensores das novas regras ortográficas quem realmente manifesta o fundo da nossa tradição. Este aspecto merece atenção, até por se relacionar com a origem da crise económica.
Portugal é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confiança em elites, especialistas, leis e políticas. Desconfiamos instintivamente da gente comum, de mercados e forças sociais livres. A nossa direita é naturalmente oligárquica, e a esquerda também, na elite progressista do partido. Ambas consideram o povo incapaz, necessitando de orientação. O próprio povo está de acordo, ansiando por chefes salvadores ou acusando os líderes de todo o mal.
A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Inglaterra é uma sociedade aristocrata, onde perdura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada na iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França, pelo contrário, afirmando-se democrática e abominando tirania e desigualdade, prefere planeamento e regras impostas de cima, desconfia visceralmente de liberais e movimentos espontâneos e confia em intelectuais e especialistas.
Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na Primeira República. A simples concepção de um Estado intrometido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos trouxe à emergência financeira.
A solução razoável para a questão seria elencar e classificar as diferentes ortografias como variantes vivas e aceitáveis de uma língua dinâmica e florescente. Mas nesse caso o académico seria servidor da língua, não seu juiz. Além disso, evitava-se a oportunidade de criar estruturas burocráticas, com funcionários, comissões e ajudas de custo. As editoras escolares perderiam a pequena fortuna que sai da substituição de toda a bibliografia lectiva e, acima de tudo, desaparecia um belo debate ocioso, abstrato e inútil, excelente para ocultar as verdadeiras dificuldades nacionais.
João César das Neves in DN online
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