Em tempos de dificuldades surgem as discussões mais esdrúxulas e os argumentos mais espantosos: o País anda assolado pela dúvida de pagar as dívidas. Se os débitos antigos são a razão da crise, porquê honrar tais compromissos?
A argumentação usa justificações políticas, económicas, financeiras ou comunitárias, mas em geral omite o essencial. Invoca-se a estabilidade do euro e a crise internacional, a credibilidade soberana e o acesso a futuros créditos, mas quase ninguém afirma o motivo óbvio: pagar as dívidas é a única atitude honesta e decente. Parece que no aperto, a conveniência anula as razões éticas, logo no momento em que são mais necessárias, precisamente por haver gente a sofrer.
Isto não significa que essas análises esqueçam os valores. Aliás, grande parte da discussão apresenta-se como moral, mas noutro nível. Se, como dizem os cartazes, "A troika manda roubar ao povo para dar aos banqueiros", então a própria justiça exige que não se paguem as dívidas. Fala-se, não do nosso dever em cumprir os contratos e honrar responsabilidades, mas do alheio. Refere-se não o calote, mas os abusos que alegadamente o justificam.
É verdade que os melhores filósofos afirmaram que em caso de necessidade todos os bens são comuns, porque o direito à vida e dignidade se sobrepõe à propriedade privada. Também a ciência económica diz que a ameaça de depressão recomenda a ambas as partes o alívio dos débitos. Mas essas são situações-limite, longe de um produto per capita de 20 mil dólares e recessão a 2%.
Será que no primeiro quartel do século XXI é preciso explicar que o dinheiro que os banqueiros emprestam não é deles mas nosso? Será que não sabem que é o povo depositante a ser roubado se o povo devedor não honrar os compromissos? Há 200 anos, quando nasceram as ideologias que alguns hoje revivem, já era forçado o simplismo do embate entre uma classe de ricos parasitas à custa dos proletários escravizados. Hoje, na globalização e capitalismo popular, o mito perdeu toda a plausibilidade. Não existe conflito entre banqueiros e povo. Aliás, as instituições financeiras estão mais zangadas com a troika do que os funcionários públicos.
Outra variante coloca a questão entre a Alemanha rica e os pobres gregos e lusitanos. Os quais andam há décadas a comer dos fundos estruturais que os ricos da Comunidade enviam e encheram os bancos deles com a sua dívida pública e privada. Agora, quando os tais ricos exigem alguma austeridade como condição para mais uns milhares de milhões de novos empréstimos, acusam-se os alemães de falta de solidariedade europeia. Falta de solidariedade!?
A lógica que suporta as queixas é uma velha falácia. A sociedade é injusta e eu sinto-me enganado; por isso é legítimo faltar aos compromissos e abusar, o que só por si torna a sociedade um pouco mais injusta. Como me considero tratado com pouca dignidade, tomo um comportamento indigno, que confirma o suposto tratamento inicial. Foi esta espiral de infâmia e desespero que dominou a Europa há cem anos, conduzindo ao extremismo político e a duas guerras mundiais.
Em países civilizados, membros de inúmeros fóruns internacionais e signatários de múltiplos tratados e proclamações, era de esperar que estes temas básicos fossem pacíficos e estabelecidos. Mas estes debates mostram uma das verdade mais essenciais: a humanidade nunca pode dar como adquirido qualquer valor, por mais básico que seja. Cada geração tem sempre de reaprender todas as atitudes elementares, como em cada novo dia, cada um de nós tem de se comprometer de novo com uma vida digna e nobre.
A civilização é um bem sublime e frágil. Foi após as eminentes conquistas do espírito alemão iluminista e romântico que os nazis cometeram atrocidades que os seus pais e filhos nem conseguem conceber. Hoje, as questões do aborto e da eutanásia reabrem discussões de direitos fundamentais que os nossos avós consideravam pacíficas. Perante casos tão extremos, não pode espantar ver pessoas inteligentes e sérias duvidar do dever de pagar dívidas.
João César da Neves in DN online
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