Este é o momento do ano com maior elevação estético-artística. As negociações à volta do Orçamento do Estado suscitam sempre assombrosos requintes de retórica e prodígios de embuste. Somando agora o dramatismo e urgência da crise, a temporada do OE de 2012 promete ser a melhor de sempre, trazendo até um toque novo. Se por momentos esquecermos o interesse nacional, podemos deliciar-nos com o simples virtuosismo dos raciocínios e excelência da aldrabice.
A democracia portuguesa tem vindo a melhorar sucessivamente a capacidade de pressão dos interesses e grupos organizados. Hoje as suas técnicas de influência e argumentação estão ao nível do melhor do mundo. Todas as principais corporações têm bem oleadas as suas influências partidárias, com poderosos embaixadores junto a cada centro de poder. Nesta altura Parlamento e corredores dos ministérios são palcos de portentos de distorção e aproveitamento. A lista de propostas de alteração ao Orçamento constitui exposição com mais valor artístico que muitos catálogo de museu.
Este ano o tema central é equidade. Muitos pretendem demonstrar a enorme injustiça por apenas alguns sofrerem cortes, como os servidores do Estado nos dois salários, sem tocar no sector privado. Mas verdadeira equidade significaria que os serviços públicos estariam a ser eliminados ao ritmo das falência das empresas, sendo os funcionários dispensados aos milhares sem indemnização, por extinção da entidade patronal. Aí sim, haveria equidade. Olhar apenas para o corte, sem ligar às outras diferenças, é aldrabice digna das melhores antologias.
Os nossos magistrais políticos não se limitam a protestar, mas dizem apresentar alternativas responsáveis para se conservar um dos salários. Todas elas caem sobre as empresas, em particular nos lucros. Também isso é prodígio de distorção. Estamos no meio de uma crise financeira, que necessariamente faz desaparecer o capital. É essa escassez que cria o drama bancário, a queda brutal no investimento e consequente desemprego e recessão. Neste enquadramento qual a solução apresentada? Carregar ainda mais sobre os lucros das empresas e espremer ao máximo aqueles que poderiam poupar e investir. Depois admiram-se da fuga de capitais, colapso da produção e eliminação de emprego. É tão desmiolado que, se não fosse dramático, seria irresistivelmente cómico.
Nunca chegaremos a descobrir se os que dizem estes disparates acreditam mesmo nisso ou sabem da manipulação. Em qualquer caso hoje os partidos estão totalmente minados pelos interesses, servindo como sua correia de transmissão. PCP e BE vivem da fama. Os proletários só estão na retórica, porque as propostas são para a classe média, que lhes dá o voto. O PS, que há anos esqueceu o socialismo em qualquer dos sentidos da palavra, mudaria com vantagem o nome para Partido dos Serviços, mantendo a sigla. Mostrou-o na ruinosa gestão desde 2005 e confirma-o nesta argumentação orçamental. Desta vez os mais aflitos são PSD e PP, divididos entre o sucesso do Governo e a vassalagem aos interesses. Por um lado sabem que só manterão o poder se cumprirem as exigências dos credores, por outro devem o lugar a quem os elegeu.
Para lá das pérolas de controvérsia, a presente edição do festival traz emoção adicional. Trata-se do primeiro confronto público entre a necessidade premente de austeridade e o poder implacável dos interesses. Quem vencerá este embate de gigantes? De um lado temos a inexorável crise financeira que assola todo o mundo e colocou Portugal numa posição de especial fragilidade. É urgente cortar despesa, indispensável mudar hábitos, forçoso reformar o sistema. Do outro está a invencível força dos grupos de pressão, causa determinante da crise, com décadas de dinheiro público esbanjado a favor dos interesses. Agora, invertendo-se a situação, urge desviar deles os custos do ajustamento. Este é o combate histórico e decisivo da actualidade: a troika inevitável enfrenta os grupos intocáveis. O país segue apaixonadamente o choque de titãs.
João César das Neves in DN online
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