A Grã-Bretanha está envolvida num escândalo terrível. Isso não é propriamente novidade, mas desta vez há algo inesperado: a queda de um diário sensacionalista. Nunca antes os maus da fita eram jornalistas. O News of the World, fundado em 1843, era o periódico de língua inglesa mais vendido em todo o mundo. O seu fim, a 10 de Julho, revela várias coisas sobre o nosso tempo.
O jornalismo de escândalo deste tipo de publicações é desconhecido em Portugal. Apesar das críticas à qualidade da nossa imprensa, ela está vários furos acima do que os tablóides produzem. Não se trata de um traço cultural, porque no liberalismo e na República de há cem anos também cá havia o insulto institucionalizado e a mexeriquice operacional da imprensa de valeta. Mas hoje os portugueses não compram este tipo de lixo. A cena britânica inclui o melhor e o pior no jornalismo mundial, numa cultura de abertura e liberdade que tudo permite.
É muito curioso notar também que o pecado que eliminou o News não foi nenhuma das barbaridades que cometeu ao longo dos anos. Não morreu por causa da chantagem, maledicência, calúnia e destruição de carreiras. Nem sequer foi o uso de escutas ilegais e subornos, que já tinha sido denunciado há dois anos quase sem efeitos. A queda súbita veio quando se soube que as práticas também atingiram vítimas de terrorismo ou familiares de soldados. A indignação só surgiu quando os alvos de espionagem foram, não famosos, mas membros do público. Alguém que poderia ser um dos leitores. Aí o jornal perdeu tudo.
Outro elemento essencial é que este caso não representa uma redução do poder da imprensa, senhora suprema da sociedade mediática. Não foi a polícia, o Governo ou os tribunais a denunciar o caso, mas o The Guardian em Julho de 2009. Fundado em 1821, é hoje a segunda publicação em inglês mais lida na Net, a seguir ao New York Times, de 1851, que por coincidência foi o segundo a expor o escândalo a 1 de Setembro de 2010. Isto significa que o sacrossanto poder da imprensa se mantém incólume. Aliás, como a Scotland Yard vem acusada de receber subornos do News e o Governo tinha várias ligações ao mesmo jornal, os poderes oficiais estão tão vulneráveis neste como em todos os ataques anteriores desde Watergate. Continua a ser uma luta de notícias contra políticos. E nunca ganham os governantes.
O primeiro-ministro foi envolvido porque teve ao seu serviço um anterior editor do jornal. Assim ressurge o elemento mais indispensável, mas também o mais estúpido destes processos: todos se divertem a atacar o poder, obcecados com os detalhes do caso, esquecendo o bem público, os problemas nacionais, o futuro do país. Nestes momentos a sociedade mediática torna-se infantil, quase demente. Mesmo que as piores suspeitas se confirmassem, que pode isso valer em comparação com o normal funcionamento das instituições democráticas?
Outro elemento insólito é o principal suspeito, o magnata Keith Rupert Murdoch, dono do jornal. O bilionário australiano de 80 anos, que do nada construiu um enorme império mediático, é conhecido pela sua agressividade, nos negócios e nas publicações, e naturalmente fez muitos inimigos. A humilhação pública de alguém que há semanas era todo-poderoso soa a justiça poética. Julgamos contemplar a fragilidade do poder, que rapidamente se esvai. Mas a economia não tem a vulnerabilidade mediática da política e o império empresarial sobreviverá quase intacto.
O problema realmente curioso, deste como de tantos outros casos semelhantes, está na sua razão profunda. Por que motivo o cidadão contemporâneo, supostamente tão tolerante e relativista, se torna por vezes moralista fanático, com contornos inquisitoriais? Como conciliar esta mistura incongruente de laxismo e severidade? O News of the World cometeu as tropelias mais infames durante décadas perante o aplauso geral. Agora cai sob a censura generalizada sem perceber bem porquê. Esta história vem envolvida em contradição, manipulação e hipocrisia. Como eram as notícias do News of the World.
(Fonte: DN online)
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