Agora que toda a gente faz pontaria contra Rupert Murdoch, convém não esquecer que o problema da imprensa sensacionalista não é só de métodos, mas também de conteúdos.
O problema da imprensa sensacionalista não reside apenas nos procedimentos mas nos conteúdos: é impossível cozinhar lixo cordon bleu.
Rupert Murdoch converteu-se em "carne para canhão". Estupefacta e escandalizada, a aldeia global segue com curiosidade mórbida o reality show do magnata. Murdoch está a provar do seu remédio ou, dito de outro modo, está a ser vítima do monstro que criou. E é provável que em tais momentos, já no final da vida, se sinta como William Randolph Hearst, que Orson Welles levou ao grande ecrã sob a máscara de Charles Foster Kane.
Ninguém acredita que o empresário australiano desconhecesse que no News of the World se usavam métodos vergonhosos e reprováveis, tendo-se chegado ao extremo de espiar as mensagens do telemóvel de Milly Dowler, a jovem sequestrada e posteriormente assassinada. Não há proprietário dos media que não esteja a par dos sistemas usados pelos trabalhadores do seu jornal, e mais ainda se estes precisam de gastar quantias significativas em contratação de detectives, escutas utilizando tecnologias sofisticadas, etc. De pouco valeu a Murdoch reconhecer os danos causados pelo ex-director Andy Coulson a quatro mil pessoas espiadas, entre gente anónima e personalidades públicas, e encerrar o semanário. A polémica está servida, pondo em xeque toda a imprensa sensacionalista, e exige apuramento de responsabilidades.
Estaremos a bater no fundo?
A reacção que a notícia gerou na opinião pública é no entanto surpreendente. Semana após semana, os media do mundo inteiro publicam notícias, análises e colunas de opinião sobre este "género", se assim se pode chamar: sobre os métodos usados e as consequências que têm sobre as vítimas e os destinatários. Os mais optimistas vêem nisto indícios de que o sensacionalismo bate no fundo e os leitores e as audiências estão cansados da "programação-lixo" e reagem quando é em demasia. Para outros, o público, ao ser tratado como massa, é manipulável, tanto para o mal como para o bem, e responde com submissão às indicações do regente da orquestra. Dantes aplaudiam, agora assobiam.
Não nos enganemos. As revelações do jornal The Guardian estão mais relacionadas com o medo ao império mediático que com a preocupação pela ética jornalística, o mesmo se passando com as reacções políticas no Parlamento. Como diz Soledad Gallego-Díaz no El País, "a desagradável realidade é que, por muito que digam estar escandalizados, os sucessivos governos britânicos, tanto conservadores como trabalhistas, se entenderam às mil maravilhas com o império Murdoch e nunca se importaram por ele ser em boa parte sensacionalista, coisa considerada quase respeitável; o que os preocupou foi ele ter descambado num verdadeiro jornalismo de pocilga".
O uso de tácticas ilícitas e mesmo criminosas na obtenção de informação trouxe ao magnata proveitos chorudos . Murdoch domina 40% da imprensa britânica, é proprietário de muitos media nos EUA e na Austrália e estava prestes a adquirir 100% da BSkyB, a principal plataforma de televisão paga no Reino Unido, na qual já detinha uma quota de 39%. O seu grupo inclui também diários sérios e respeitados (The Wall Street Journal, The Times), que não são no entanto os que mais lhe alimentam o cômputo dos resultados.
Os tablóides de Murdoch não são os únicos atacados por este cancro na Grã-Bretanha. O mal da imprensa anglo-saxónica é mais extenso e profundo, mesmo que agora se revele em toda a sua crueza e provoque repúdio o que antes se aceitava com mórbido prazer.
Dever-se-á agradecer à opinião pública por exigir responsabilidades à imprensa, à polícia e aos políticos, coisa impensável em países mediterrânicos. A saúde de uma democracia mede-se pela eficácia dos seus instrumentos, pela capacidade de perseguir e castigar a corrupção e por uma sociedade civil que repudia a mentira.
O problema é o lixo
A julgar pelos dados, o sensacionalismo não parece estar a bater no fundo. Muitos britânicos consumiam informação-lixo (o News of the World tinha uma tiragem de três milhões de exemplares), e no entanto ficaram incomodados por lhes terem mentido sobre o modo de cozinhar esse lixo e não com o lixo em si. É no entanto impossível cozinhar "lixo cordon bleu". O problema não reside unicamente nos procedimentos, reside nos conteúdos. É evidente que certos conteúdos só se conseguem obter recorrendo a métodos pouco escrupulosos. Pagar pela informação ou contratar detectives para espiar certos famosos não parece ser exclusivo dos media de Murdoch. O News of the World não era senão um primus inter pares no panorama dos tablóides britânicos.
A relação directamente proporcional entre incremento de informação escabrosa e aumento de tiragens ou de audiências é muito apetecível para os empresários da comunicação. Se bem que algumas fórmulas se tenham esgotado, é uma realidade que o recurso ao mórbido, sobretudo quando falta criatividade e a crise é mais aguda, continua a dar resultados.
O sensacionalismo mediterrânico
Em Espanha, Itália e França, não existe uma imprensa sensacionalista ao estilo dos tablóides anglo-saxónicos. Houve um tímido e fugaz intento nos anos noventa com o jornal Claro, diário de sucesso que toda a gente considerou como o herdeiro do El Caso.
O sensacionalismo estabeleceu a sua via de contágio através das revistas e dos programas do coração. Com a eclosão das cadeias privadas de televisão surgiram no pequeno ecrã aberrações de grande audiência sob a denominação popular de "programas lixo", nos quais participam alguns jornalistas com poucos escrúpulos ao lado de celebridades que fazem o papel de marioneta, bobo ou princesa do povo. Tais programas convertem a realidade televisiva em notícia com total falta de rigor informativo, arejam sem pudor algum a vida íntima dos famosos, insultam e brincam com a fama, a imagem e a honra com meios menos sofisticados que os da imprensa sensacionalista britânica mas igualmente desprezíveis.
O recurso à justiça, usando mais denúncias e processos que punições, serve para aumentar as audiências. Os procedimentos são demorados e as possibilidades de recuperar direitos tão imateriais e sensíveis como os mencionados praticamente nulas. Acresce que os ingressos da publicidade nesses programas compensam largamente as multas a pagar. Calunia, calunia, que algo sempre fica ... às vezes muito.
A audiência como mercadoria
O cerne do problema assenta no conceito de audiência que os media tiverem. Muitos esquecem que, no processo da comunicação, a audiência é o receptor, o destinatário da informação. Mais ainda, é o possuidor do direito à informação, o direito a ser informado com verdade contido no artigo 37 da Constituição . E é o público que deposita esse direito nas mãos dos profissionais da informação, para eles o satisfazerem exercendo o dever de informar.
Se a audiência se converte em moeda de troca ou em mercadoria, se o destinatário da comunicação é o anunciante, em vez do público, então vale tudo, contanto que se venda. São os mass media ao mais puro estilo ditatorial.
Daqui a contagiar media mais sérios e rigorosos acenando-lhes com procedimentos que tantos benefícios lhes trazem, ou com a tentação de baixar os níveis de qualidade ou de reduzir o autocontrolo vai apenas um passo.
Auto-regulação e exigência
É conhecido o repúdio que os jornalistas têm pela censura e a regulação em demasia. O quarto poder é para os governos tão perigoso como apetecível, e controlá-lo um desejo que cresce tanto mais quanto mais o regime estiver longe da democracia. De facto, uma das primeiras imposições dos governos totalitários é o controlo da imprensa e o seu uso como meio de agitação e propaganda.
Delitos como os cometidos na imprensa de Murdoch ou abusos como os que a diário se praticam nos programas-lixo apenas contribuem para que os três poderes restantes repensem a necessidade de uma regulação externa, que muitas vezes é uma simples desculpa para sacudir o incómodo causado por uma imprensa que os intimida e põe em questão os seus excessos.
De algum modo se terá de pôr cobro às práticas viciadas que afectam a imagem do bom jornalismo. Do ponto de vista dos jornalistas, a auto- regulação é vista como uma solução intermédia entre censura e anarquia: que sejam os próprios media a estabelecer o seu código ético conforme com a deontologia, a Constituição e o Código Penal. Neste momento, será insuficiente.
Mas se algo nos ensina também a crise britânica é o fracasso da auto-regulação através da Press Complaints Commission, que, em teoria, deveria atender as queixas do público contra os atropelos da imprensa.
Debates públicos como aqueles a que assistimos a propósito do caso do News of the World fornecem-nos uma boa ocasião de reflexão. Maior regulação - externa ou interna à profissão - não irá tornar mais sério o jornalismo se não forem os jornalistas a ter uma ética exigente e mais elevada, que não se reduza à simples utilização dos meios legais.
A par da existência de normas jurídicas, é necessário haver quem se empenhe na formação dos futuros jornalistas, ensinando-lhes com seriedade Ética Profissional e Direito da Informação nas faculdades. Formar bons profissionais, com consciência ética e capazes de se sobreporem a práticas ilícitas, gerar uma cultura de bom jornalismo e chegar a dirigir os media e mesmo - porque não? - geri-los. Uma empresa jornalística é uma empresa muito especial. Da qualidade do seu produto depende a liberdade do destinatário e a sua capacidade de decidir política, social e individualmente.
Finalmente, dever-se-á a par de tudo isto colocar no seu devido lugar o destinatário da informação: os leitores e as audiências. O fortalecimento das instâncias intermédias (associações de ouvintes, de telespectadores e consumidores de televisão) é vital para exigir aos media uma comunicação de qualidade e acorde com a maturidade do público, em especial do público infantil.
Tudo quanto nesta linha se puder conceber - certificados de qualidade, prémios aos melhores programas ou profissionais, fóruns de debate, etc., - contribui para mostrar a dirigentes e empresários preocupados com o cômputo dos resultados que um bom produto vende.
Cristina Abad Cadenas
Aceprensa
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