O Ocidente enfrenta fortes debates à volta da vida e da família, promovendo o aborto, divórcio e homossexualidade. Entretanto o mundo árabe sente momentos de intensa perturbação política. Muitos andam entusiasmados ou assustados com isto. Para o entender é preciso conhecer a dinâmica das ondas.
A sociedade humana vê-se sujeita de tempos a tempos a vagas doutrinais. Uma ideia surge com tanta força que parece imparável, capaz de varrer tudo à sua frente. Dir-se-ia que nada resistirá e o mundo será dominado. Depois, como é da natureza de todas as vagas, as coisas amansam. Por vezes tudo se esfuma sem efeitos; outras conseguem resultados, mas em todos os casos o aspecto ameaçador e irresistível desaparece. A onda rebentou.
O fenómeno é antigo e versátil. Existiram ondas religiosas, políticas, artísticas, morais, sociais. O marxismo foi um dos casos mais perfeitos. É difícil compreender a força que há 50 anos essa doutrina tinha. Gostando ou não, não era possível pensar o futuro do mundo sem o imaginar comunista; e o triunfo estava próximo. Observar hoje os partidos que ainda seguem essa orientação é como contemplar os charcos na praia.
As vagas têm alguns aspectos marcantes. O primeiro é que todas são sempre destruidoras. Por melhores que nasçam, criam muito estrago no entusiasmo revolucionário. O surgimento do cristianismo, como do método científico ou da democracia, gerou danos laterais. Isso está na própria natureza das ondas, mesmo com boas intenções. E todas as têm. Todas nascem e se alimentam de um elemento bom. Mesmo as mais terrivelmente destruidoras, como fascismo e nazismo, surgiram de um apelo à justiça. Só aceitando esta ambígua relação entre bem e mal se entende a realidade.
Outro aspecto é que o tempo joga sempre contra elas e todas acabam por se esgotar. As poucas com efeito duradouro, como Igreja Católica ou Islão, só o conseguem à custa de sucessivos renascimentos e regressos às origens. As várias escolas estéticas, seitas protestantes ou lideranças políticas são encadeados de ondas de efeitos variáveis. O ser humano só conserva aquilo que continuamente recomeça.
Mais decisivo é saber como agir perante uma onda. Enfrentar um tsunami é uma experiência horrivelmente assustadora. Por causa disto, no progresso dos últimos 250 anos, repetidamente se sentiu o pânico das antigas invasões bárbaras, julgando-se assistir ao fim da civilização.
A primeira regra é nunca seguir a atitude instintiva. Esbracejar diante de uma onda para a tentar parar é tolo. Contra uma torrente não se argumenta, conspira, organiza. Ela seguirá o seu caminho arrastando tudo, até se esgotar. Nos raros casos de vagas interrompidas à força, como os cátaros em 1229 e Tiananmen em 1989, é discutível se tinham dimensão de verdadeiras ondas. Faz parte dessa dinâmica ser imparável. Também esperar, que acaba sempre por resultar como vimos, só é resposta nas fases finais do processo, que pode ser longo.
Assim, face a uma onda, só existem duas alternativas. A primeira é tentar agarrar a vaga e surfar o movimento. Isso, além de implicar aceitação, mesmo hipócrita, é extremamente difícil e perigoso, porque "a revolução, como Saturno, devora os seus filhos", como disse Georg Büchner (A morte de Danton, 1835) descrevendo a queda de um dos melhores surfistas de uma das maiores ondas da história.
Para quem julga enfrentar uma brutal ameaça ao que considera mais sagrado, só resta uma atitude sensata: mergulhar quando a vaga se aproxima. Submergir significa refugiar-se nos princípios fundamentais, verdades básicas, raízes da civilização. Só atrás da rocha se resiste à enxurrada.
Perante as paradas gay e manifestações árabes muitos se alegram ou assustam. É bom que todos se lembrem que, goste-se ou não, são ondas passageiras. Terão alguns efeitos, muito menos do que tantos sonham ou temem. Não são as ondas que determinam a paisagem, mas as rochas e as correntes. A única forma de enfrentar com proveito estes jactos de impulso é reafirmando os valores básicos da civilização.
João César das Neves
Fonte: DN online
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