Realizou-se de 20 a 22 de Setembro em Nova Iorque a Cimeira Mundial das Nações Unidas sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, um encontro em que os líderes internacionais avaliaram o grau de cumprimento dos oito objectivos acordados no ano 2000, sugerindo medidas correctoras pertinentes para em 2015 se aproximarem o mais possível do então projectado: erradicar a pobreza extrema e a fome; permitir o acesso universal à educação; promover a igualdade de género; reduzir a mortalidade infantil e materna; combater a propagação da SIDA/AIDS e melhorar a sustentabilidade do ambiente.
Reuniões deste género, bem como as anteriormente realizadas pelos G8 e pelos G20, dão aos agentes que trabalham em campos directamente relacionados com os Objectivos do Milénio a possibilidade de chamar a atenção sobre o "seu" interesse concreto. No caso da energia, por exemplo, a Agência Internacional de Energia elaborou um relatório em que sublinha o facto de "ser crucial o acesso à energia para combater a pobreza no mundo. Esta apenas se conseguiria erradicar se mais 395 milhões de pessoas tivessem acesso à electricidade". É provável que muitas empresas eléctricas anseiem pelo desabrochar deste mercado nos países mais pobres.
Há também políticos que, quer pela pressão exercida pelos lobbies, quer por genuína convicção pessoal, incluem no processo questões de tipo ideológico. É o caso do interesse em promover o livre acesso ao aborto como medida fundamental para favorecer a saúde materna.
Este último argumento foi aduzido publicamente pela Secretária de Estado Hillary Clinton na última reunião dos G8, realizada no ano em curso, sem ter em conta que mais de 125 países membros das Nações Unidas, se não proíbem totalmente a prática do aborto, pelo menos de certa forma a restringem. Foi Stephen Harper, primeiro ministro do Canadá, que nessa ocasião refutou a tentativa de integrar o aborto entre as iniciativas dirigidas à redução da mortalidade materna, esclarecendo que "queremos ter a certeza de que os nossos fundos são utilizados para salvar vidas de mulheres e de crianças".
Quando "maternidade" se converte em "doença"
Se bem que o enunciado do Quinto Objectivo do Milénio seja "Melhorar a Saúde Materna", o que se traduz principalmente na melhoria da saúde reprodutiva das mulheres, a maioria dos esforços realizados pelas Nações Unidas tem uma orientação não-reprodutiva: estimular a contracepção ou evitar uma gravidez não desejada. Dá a impressão de que se pode decidir quando uma coisa é doença e quando o não é. No caso da maternidade, se não é desejada é diagnosticada como doença e, segundo o ponto de vista das Nações Unidas, deverá ser tratada como tal.
Na nova Estratégia Global, anunciada no final da Cimeira pelo Secretário Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, fica bem claro que só haverá recurso ao aborto nos países em que tal é permitido. Mas, por outro lado, governos e políticos são encorajados a tomar as convenientes decisões para legislar de acordo com o espírito dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.
Mesmo que alguém estivesse de acordo com tão evidente manipulação da realidade, este assunto já não faria em qualquer caso parte das metas definidas pelo Objectivo de Desenvolvimento do Milénio que nos ocupa: melhorar a saúde reprodutiva da mulher. Se se trata de melhorar este aspecto, os dados fornecidos pelo Relatório de 2010 sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio indicam que a principal causa de mortalidade materna nas regiões em vias de desenvolvimento não são precisamente os abortos "não seguros" mas as hemorragias pós-parto, as infecções e a hipertensão, problemas a que o Relatório das Nações Unidas não dá demasiado ênfase.
Legalizar o aborto não reduz a mortalidade materna
Apesar das dificuldades para medir com rigor a mortalidade materna no mundo, se tivermos em conta os últimos dados a tal respeito apresentados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) - semelhantes aos fornecidos por um estudo da Fundação Bill & Melinda Gates publicado em Abril deste ano na revista The Lancet (12-04-10)-, pode-se afirmar que o acesso ao aborto livre não incide de modo positivo na saúde da mulher; muito pelo contrário.
Nisto insiste o político republicano canadiano Chris Smith, que afirma que "contrariamente ao que se vem dizendo, dados de estudos realizados mostram haver países onde a lei proíbe o aborto e cujos níveis de mortalidade materna estão entre os mais baixos do mundo; entre eles se contam a Irlanda, o Chile e a Polónia".
Segundo Smith, "acresce que o aborto é, por definição, mortalidade infantil, o que seria contrário aos próprios Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio. Além de que o termo enganoso "aborto seguro" (safe abortion) camufla o facto real de que nenhum aborto - legal ou não - é seguro para a criança e supõe consequências negativas, incluindo danos emocionais e psicológicos para a mãe.
O drama de perder um filho desejado
Para melhorar a saúde materna, a prioridade deveria ser um profundo empenho em atender durante a gravidez e o parto todas as mulheres que esperam, entusiasmadas, um filho. Pois por vezes dá a impressão de que, quando a maternidade é uma coisa desejada e querida não existem problemas e tudo é cor-de-rosa para os afortunados pais. Não é esta a impressão transmitida por Moses Okoth, um dos protagonistas da exposição itinerante "África: caras e coroas. Problemas e soluções para uma saúde e educação dignas", organizada em Barcelona pela Fundação África Digna.
Em declarações ao La Vanguardia de 21-09-10, Okoth conta que em Korogocho, o bairro de Nairobi onde vive, "a maioria das mulheres não tem possibilidade de fazer uma ecografia. O bom resultado da gravidez é uma questão de sorte. Não têm acesso a nenhuma informação sobre o modo de a controlar. A maioria das mulheres dá à luz em casa. Serem atendidas é para elas um sonho, um luxo que não se podem permitir".
Qualquer atenção médica é ali desproporcionadamente cara. "Há cinco anos, a minha mulher ficou grávida e gastámos 70 euros por mês para ela fazer seis ecografias. Era praticamente tudo quanto tínhamos. Infelizmente, o parto complicou-se e perdemos o bebé".
Após tão dramática experiência, este jovem africano, agora com 32 anos, tomou a decisão de se formar como técnico de laboratório e conseguiu abrir no seu bairro um centro de ecografias onde os exames custam um terço do preço oficial.
Alvaro Lucas
Aceprensa
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