No debate parlamentar sobre o estado da Nação a 15 de Julho, o senhor primeiro-ministro afirmou: "Portugal pode orgulhar-se do caminho que está a fazer, em dimensões absolutamente essenciais para a coesão social (...), a redução da pobreza e das desigualdades." A razão da insólita tirada veio de o INE ter convenientemente publicado nesse dia os resultados provisórios do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento. Isso permitiu a José Sócrates assegurar que, "em 2009 (com base nos rendimentos de 2008), Portugal alcançou a mais baixa taxa de pobreza de sempre, desde que existe a série: 17,9%". Segundo o PM, "esta evolução só tem um significado. Ela quer dizer que políticas reformistas, que discriminam positivamente aqueles que mais necessitam, com critério e fiscalização, produzem realmente efeitos".
Esta declaração só tem um significado: o estado do debate político ainda é pior que o estado da Nação. É difícil conceber um responsável sensato e experiente a cair em tal tolice. Louvar-se por sucessos com dois anos de atraso, precisamente no tema onde esses anos criaram as piores perdas, é grotesco.
Os números divulgados são alheios à realidade social. É excelente que a taxa de pobreza tenha descido de 2004 a 2008. Infelizmente, isso hoje é irrelevante, porque a trajectória se inverteu. O ano de 2008, a que se referem os valores agora publicados, terminou com desemprego de 7,8%, que entretanto saltou para os 10,6%. Os 150 mil novos desempregados fazem toda a diferença. Isso é evidente em múltiplos indicadores, mesmo que tenhamos ainda de esperar dois anos pelas estatísticas oficiais provisórias. Perante tão triste quadro, elogiar ganhos obsoletos seria amarga ironia se não fosse inconsciência.
Aliás, por razões orçamentais, o mesmo Estado tem cortado o acesso ao subsídio de desemprego e outros apoios, como o mesmo discurso admite de forma subtil: "Intensificámos a fiscalização das prestações sociais." Mas não toca nas obras megalómanas, assegurando "os investimentos nas infra-estruturas que nos aproximam do centro da Europa: as infra-estruturas em logística, nos portos e no transporte marítimo, na alta velocidade ferroviária, na conclusão do plano rodoviário, no novo aeroporto internacional". Estas são prioridades políticas.
A situação é grave e paradoxal. Portugal vive séria emergência social com crescente pobreza. A crise atinge naturalmente os estratos mais desfavorecidos e os mecanismos do Estado, mesmo poderosos, estão manietados. A Segurança Social construiu para si ao longo de décadas um papel indispensável de apoio, mesmo quando boa parte das suas verbas é canalizada para instituições solidárias que fazem o trabalho social directo. Agora, por opções orçamentais, o formidável mecanismo perde agilidade no momento mais delicado.
É em situações destas que se vê a elevação do tecido social e cultural de um povo. Quando o Estado falha, os pobres sabem a quem se dirigir: a Igreja.
Uma semana depois do debate, o Conselho Consultivo da Pastoral Social na reunião extraordinária de 22 de Julho apelou a "um pacto social sustentado e justo para fazer face à dramática situação económica do País". Sem ilusões, "este apelo, precisou, é feito a todos os cidadãos, dado que o Estado é muito impotente".
Face às recentes medidas do Governo, o presidente D. Carlos Azevedo teve de fazer um aviso de elementar bom senso: "Eventuais abusos na utilização do rendimento social de inserção não justificam cortes nesta prestação social", que é "um contributo fundamental para muitas situações graves". Pelo seu lado, a Igreja propõe-se criar um "novo 'fundo' conjunto para apoiar a população mais necessitada".
Face à miséria, a sociedade tem de se libertar da tutela pública e assumir o seu papel. D. Carlos fez quatro apelos: "Cada paróquia, congregação, movimento inclua no seu plano pastoral a atenção às pessoas mais afectadas pela crise, denuncie injustiças locais, exija empenhamento político da administração pública, motive a comunidade para a partilha dos bens."
João César das Neves
(Fonte: DN online)
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