Comentário escrito depois do encontro de Bento XVI com a comunidade judaica de Roma e publicado no "Corriere della Sera" do dia 20 de Janeiro.
Precisaria deixar de ter má-fé, de tomar partido e, para ser cabal, eliminar a desinformação, quando se trata de Bento XVI. Desde a sua eleição, intentou-se um processo ao seu "ultraconservadorismo", que é continuamente retomado pelos mass media (como se fosse possível um Papa não ser "conservador"). Insistiu-se, com subentendidos e até com anedotas pesadas, sobre o "Papa alemão", o "pós-nazismo" de batina, ou sobre aquele a quem a transmissão satírica francesa "Les Guignols" não hesitava em chamar "Adolfo II".
Falsificaram-se, pura e simplesmente, os textos: por exemplo, a propósito da sua viagem a Auschwitz de 2006, afirmou-se dado que com o passar do tempo as lembranças se tornam mais incertas ainda hoje se repete que teria homenageado a memória de seis milhões de mortos polacos, vítimas de um simples "bando de criminosos", sem especificar que metade deles eram judeus (a verdade de facto é surpreendente, pois Bento XVI naquela ocasião falou efectivamente dos "poderosos do Terceiro Reich" que tentaram "eliminar" o "povo judeu" do "elenco dos povos da Terra", "Le Monde", 30 de Maio de 2006).
E eis que por ocasião da visita do Papa à sinagoga de Roma e depois das suas duas visitas às sinagogas de Colónia e de Nova Iorque, o mesmo coro de desinformadores estabeleceu um primado, estava para dizer que recebeu os louros da vitória, porque não esperou sequer que o Papa ultrapassasse o Tibre para anunciar, urbi et orbi, que ele não soube encontrar as palavras exactas a dizer, nem os gestos justos a realizar e que, portanto, a sua intenção tinha falido...
Por conseguinte, dado que o evento ainda é actual, ser-me-á consentido pôr um pontinho sobre alguns "i". Bento XVI, quando se recolheu em oração diante da coroa de rosas vermelhas deposta sob a placa comemorativa do martírio dos 1021 judeus romanos deportados, não fez mais do que o seu dever, mas fê-lo. Bento XVI, quando prestou homenagem aos "rostos" dos "homens, mulheres e crianças" capturados numa incursão no âmbito do projecto de "extermínio do povo da Aliança de Moisés", disse uma evidência, mas disse-a. De Bento XVI que retoma, palavra por palavra, os termos da oração de João Paulo II, há dez anos, no Muro das Lamentações; de Bento XVI que então pede "perdão" ao povo judeu devastado pelo furor de um anti-semitismo por longo tempo de essência católica e ao fazê-lo, repito, lê o texto de João Paulo II, precisa deixar de repetir, como burros, que é atrasado-em-relação-ao-seu-predecessor.
A Bento XVI que declara enfim, depois da segunda vez que se detinha diante da inscrição que recorda o atentado cometido em 1982 por extremistas palestinos, que o diálogo judaico-católico iniciado pelo Concílio Vaticano II já é "irrevogável"; a Bento XVI que anuncia ter a intenção de "aprofundar" o "debate entre iguais", o debate com os "irmãos mais velhos" que são os judeus, podem ser intentados todos os processos que quiserem, mas não o de "congelar" os progressos realizados por João XXIII.
Quanto à vicissitude muito complexa de Pio XII, voltarei a falar, se for necessário. Tratarei de novo o caso Rolf Hochhuth, autor do famoso Il vicario, que em 1963 lançou a polémica sobre os "silêncios de Pio XII". Em particular, voltarei sobre o facto de que este fogoso justiceiro é também um negacionista consolidado, condenado mais de uma vez como tal e cuja última provocação, há cinco anos, foi a defesa, numa entrevista ao semanário de extrema direita "Junge Freiheit", daquele que nega a existência das câmaras a gás, David Irving. Agora gostaria de recordar, como acabou de fazer Laurent Dispot na revista que dirijo, "La règle du jeu", que o terrível Pio XII, em 1937, quando ainda era só o Cardeal Pacelli, foi o co-autor com Pio XI da Encíclica Mit brennender Sorge ("Com viva preocupação"), que até hoje continua a ser um dos manifestos antinazis mais firmes e eloquentes.
Neste momento, devemos por exactidão histórica citar que, antes de optar pela acção clandestina, antes de abrir, sem o dizer, os seus conventos aos judeus romanos perseguidos pelos fascistas, o silencioso Pio XII pronunciou algumas alocuções radiofónicas (por exemplo no Natal de 1941 e 1942) que lhe valeram, depois da morte, a homenagem de Golda Meir: "Durante os dez anos do terror nazi, enquanto o nosso povo sofria um martírio assustador, a voz do Papa elevou-se para condenar os carnífices".
E, agora, surpreende sobretudo que, do silêncio ensurdecedor descido no mundo inteiro sobre o Shoah, se faça carregar todo o peso, ou quase, àquele que, entre os soberanos do momento:
a) não possuía canhões nem aviões;
b) não poupou os próprios esforços para partilhar com quem dispunha de aviões e canhões, as informações que lhe chegavam;
c) salvou pessoalmente, em Roma mas também alhures, um grandíssimo número daqueles pelos quais tinha a responsabilidade moral.
Último retoque ao Grande Livro da baixeza contemporânea; Pio ou Bento pode ser Papa ou bode expiatório.
Bernard-Henri Lévy
(© L'Osservatore Romano - 23 de Janeiro de 2010)
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