O debate internacional das últimas semanas foi caracterizado de uma maneira quase solene por uma série dos eventos que, se lidos e bem interpretados, podem-nos dar o retrato da nossa época.
Trata-se de dois eventos aparentemente não interligados entre si, mas que pelo contrário são demonstrativos de quanto no mundo globalizado de facto todos os acontecimentos não podem ser separados.
O primeiro acto surpreendente pela negativa foi a negação por parte do governo sul-africano do visto de entrada ao Dalai Lama, que iria participar numa conferência de prémios Nobel da Paz tendo em vista a divulgação do campeonato mundial de futebol em 2010. A razão apresentada foi, que a presença do líder religioso do tibetano não correspondia aos interesses da África do Sul. A verdadeira razão, no entanto, foi a proibição imposta pela China, que terá ameaçado renunciar ao acordo para o desenvolvimento entra este país e África, retirando o financiamento prometido. A gravidade do acto é confirmada pela reacção dos outros prémios o Nobel, os quais, liderados por Nelson Mandela e pelo arcebispo Desmond Tutu, ameaçaram boicotar a sua participação na conferência.
O segundo evento, igualmente emblemático, ainda que obviamente dissimilar, refere-se à visita de Bento XVI aos Camarões e a Angola.
Neste último caso, obviamente, as resistências foram menos eficazes. Mesmo se, de igual modo, atentarmos na maneira como que alguns órgãos de informação ocidentais reagiram às declarações feitas pelo Papa sobre o uso de preservativos, podemos descortinar um comportamento obstrucionista análogo, para não dizer idêntico.
Se quiséssemos ser ligeiramente maliciosos, poderíamos afirmar que silenciar o Dalai Lama revelou-se bem mais simples que calar o Papa. De facto, neste último caso tiveram de recorrer a mistificações e a alterações da mensagem, de forma a torná-la ineficaz ou até mesmo ridícula.
Por detrás destas reacções muito fortes de resistência ou de intolerância, ainda que diferentes na entidade e no significado, convém interrogarmo-nos, não pela sua validade e menos ainda pelas ideias dos seus protagonistas, bem como de seja qual for a outra figura religiosa ou moral, mas sobre as razões que motivam no mundo uma intervenção tão drástica sobre a sua liberdade de expressão.
Na realidade, nestes casos não estão apenas em jogo, os aspectos positivos, a adequação, a oportunidade de uma opinião, mas o significado profundo que as autoridades religiosas detêm na sociedade, conjuntamente com a sua liberdade de expressão. Um exemplo muito claro é o papel totalmente assertivo em relação à política que muitos ‘Mufti’ muçulmanos têm em alguns países integristas, ou na intolerância em que outras contestadas personagens políticas, como Mahmoud Ahmadinejad, manifestaram em relação à liberdade religiosa. De facto, resulta claro, que num contexto em que o poder é exercido e legitimado pela vontade popular, o próprio conceito de autoridade política deve submeter-se limitada e sujeita a controlos rigorosos. Para se evitar que as democracias degenerem em ditaduras “cesaristicas”, é lógico que a lei prescreva controlos específicos à política, de modo a que o poder político não seja transformado numa força fracturante e prejudicial à própria democracia. Recordando Maritain, poderemos dizer que a noção em si de soberania política não pode sobreviver num contexto democrático, porque a vontade popular elimina a absoluta condição do poder político das leis.
O mesmo discurso, no entanto, não é válido para as grandes autoridades espirituais grandes. Pelo contrário, dever-se-á admitir que, neste último caso, é válido exactamente o oposto. Uma verdadeira democracia é alimentada pela liberdade com que os líderes espirituais possam expressar as suas visões do mundo, sobre a vida e a morte, sem terem de solicitar autorizações nem políticas nem oportunistas. Na realidade, apenas, aonde os rabinos, os muftis, o Papa ou o Dalai Lama sejam livres de expressar livremente às consciências as suas mensagens, se vive num contexto verdadeiramente democrático.
Caso contrário encontramo-nos numa situação em que os media e os interesses políticos e económicos são transformados em seres soberanos, ou seja, anti-democráticos e totalitários.
Da mesma maneira que a ausência de febre é a prova do bom estado de saúde de uma pessoa, a liberdade de palavra das autoridades espirituais, é-o no que à solidez democrática se refere.
Existem múltiplas formas de impedir a expressão pública de opiniões religiosas, uma primeira, poderá simplesmente ser impedir de falarem os seus representantes, como sucedeu na África do Sul, mas um método mais ardiloso e não menos grave é o que manipula a mensagem transformando-a em algo de banal ou quase ridícula. Estamos perante o mesmo mecanismo, com o qual se destrói a credibilidade de uma testemunha, de forma a impedir que durante um julgamento o seu depoimento convença o tribunal.
Quanto mais forte é o poder de soberania dos interesses políticos, mais astuta é a tentativa por parte dos transmissores de ideias, que procuram na sua omnipotência impedir aos cidadãos de poder ouvir e eventualmente fazer prevalecer, a audição daquelas palavras ou indicações e absorvê-las na sua consciência. A China já nos habituou a esta inibição da liberdade religiosa, que nos escandaliza. Estejamos pois atentos, para não aplicarmos nas nossas excelsas democracias pluralistas e liberais o mesmo princípio, ainda que de um modo diverso. Existe uma ética naquilo que se faz, e essa ética chama-se, na verdade, profissional, porque está ligada com a deontologia das grandes mensagens de esperança, sobretudo quando se ouve e se deve fazer ouvir aos cidadãos as grandes mensagens de esperança ou as grandes advertências que estas importantes figuras carismáticas dirigem ao mundo. No fundo, a consciência individual é para o pensamento e para a capacidade de actuar de cada um, aquilo que numa óptica social ou global são as grandes autoridades espirituais. Alterar ou inibir, dessacralizar ou desvalorizar a sua liberdade significa empobrecer a democracia dos seus anti-corpos mais eficazes contra o totalitarismo tecnocrático.
A autoridade espiritual das grandes religiões não, em última instância, apenas importante para os fiéis, mas é-o também para a saúde da democracia. A qual se arrisca por vezes a ser segregada em novas catacumbas mediáticas.
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(Tradução e adaptação de JPR)
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