A conversa ia fiada quando, de repente, um relâmpago iluminou toda a
gruta. Depois, ouviu-se o choro de um bebé: tinha nascido Jesus, a luz do
mundo!
Foi há mais
de dois mil anos que se encontraram, no presépio, a vaca de Belém com o burro
de Nazaré. Quando Maria e José entraram no estábulo, o burro disse à vaca:
- Boa noite,
Dona Vaca, e obrigado por nos receber! Com tantos estrangeiros em Belém, não encontrámos
alojamento na pousada!
- Seja
bem-vindo, Senhor Burro! Pois, se esta jovem família tem que se hospedar num
estábulo, nesta fria noite de inverno, é porque a hospitalidade já não é o que
era!
- A quem o
diz, Dona Vaca, a quem o diz! José foi a
casa de vários familiares e amigos e ninguém nos recebeu! Todos, de uma forma ou
outra, se desculparam, ou por hospedarem parentes, ou por ser pequena a sua
casa, ou por outras razões sem razão, que não seja a razão do seu egoísmo e
falta de coração.
- Então
fiquem neste estábulo! – disse, prazenteira, a vaca, que acrescentou: É pouco o
que tenho para oferecer: apenas um pouco de palha fresca e uma manjedoura, mas
sempre é melhor do que ficarem ao relento.
- Sem dúvida!
– respondeu o jerico, que exclamou, suspirando: Depois de tantos dias a trotar, já nem os cascos
sinto!
- Não me diga
que carregou com o casal durante toda a viagem!?
- Não! José
veio sempre a pé, para que fosse Maria a vir montada!
- Mas, egoístas
como são as pessoas, devem ter passado todo o caminho a discutir quem vinha no
burro! Já não há respeito pelos animais!
- Pelo
contrário, Dona Vaca! Discutiam, é certo, mas era porque cada um queria o
melhor para o outro!
- A sério?!
Nos tempos que correm é de estranhar tanta caridade!
- Pode crer,
Dona Vaca! Veja só isto: em tantos dias de viagem, nunca os ouvi zangados e
olhe que se alguma coisa tenho grande são, precisamente, as orelhas!
- De facto, são
um casal muito especial!
- São
incapazes de pensar em si próprios! José é de poucas falas mas, quando se trata
do bem de Maria, não cede: é mais teimoso do que eu, que sou burro! Escusado
será dizer que veio sempre ela montada e ele, a pé, levando-me pela arreata.
- E porque
vieram de Nazaré, estando Maria neste estado?!
- Acho que
tem a ver com um recenseamento, mas disso não percebo muito porque, valha a
redundância, nós os burros somos mesmo burros!
- Olhe que
muita sabedoria tem um asno em dizer que o é! O que mais abunda por aí são
burros que julgam que são sábios, quando todos os verdadeiros sábios sabem que,
por muito que saibam, não passam de burros!
- É verdade,
Dona Vaca! Tenho colegas burros que gostariam de ser cavalos de corrida, ou de
alta escola, mas eu sinto-me muito bem na minha pele de asno!
- Eu também,
se quer que lhe diga, nunca fui levada a nenhum concurso de gado, mas dou mais
leite do que essas vacas todas aperaltadas que se fartam de ganhar prémios de
beleza mas, a bem dizer, não servem para mais nada. Talvez não seja tão bonita
como uma charolesa, mas acredite que o meu leite e carne não são piores do que
os delas!
- Claro, Dona
Vaca, o importante é servir! Uma vez o meu dono, José, quando eu estava com
preguiça para trabalhar – coisa de burro! – sussurrou-me ao ouvido uma frase
que nunca mais esqueci: quem não vive para servir, não serve para viver!
- Ora aí
está! É o que eu também digo aos meus vitelinhos, sobretudo quando só querem
correr e brincar …
- Eu cá sei
que sou um jumento de carga, não um cavalo de cortesias! Mas, para mim,
trabalhar não é nenhum sacrifício, mas uma honra! Tenho um tio que anda todo o
dia à nora, à volta do poço, mas nunca se farta de fazer sempre a mesma coisa.
Sabe o que me disse uma vez, que me queixei da minha vida?!
- Pois não
sei, mas diga lá, Senhor Burro!
- Disse-me,
com um sorriso que ia de orelha a orelha, que é verdade que era cansativo o seu
trabalho, aparentemente tão monótono, mas que, quando esse pensamento o
entristecia, olhava para as flores e frutos do horto, regado pela água que
tirava do poço e enchia-se de alegria, por saber que toda aquela beleza era
fruto do seu trabalho!
- Nem mais!
Às vezes também me custa sair de manhã cedo, para ir pastar, mas se o não
fizer, não tenho leite para amamentar os meus bezerros e, por isso, é sempre
com alegria que vou por esses montes e vales …
A conversa ia
fiada quando, de repente, um relâmpago iluminou toda a gruta. Depois, ouviu-se
o choro de um bebé: tinha nascido Jesus, a luz do mundo!
A vaca e o
burro, muito de mansinho, aproximaram-se da manjedoura, onde Jesus sorria. A
vaca ainda tentou dar um beijinho ao Menino, mas José não deixou pois, decerto,
O iria assustar. Quando ambos voltaram para o seu canto, a vaca comentou:
- Que Menino
tão bonito! Se eu pudesse, dava-lhe cá cada lambidela!
- Pois eu hei-de
ser sempre o seu burro! E, um dia, quando for adulto, entrará em Jerusalém
montado em mim, como se fosse eu o seu corcel! É como se já ouvisse os miúdos e
os graúdos a aclamarem Jesus, dizendo: Hossana, ó filho de David!
- Ó Senhor
Burro, que grande burrice a sua: que rei escolhe um pobre asno para seu trono
real?!
- Pode crer,
Dona Vaca, porque quem não desdenha nascer num curral, também não despreza um
pobre jumento como eu!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada