Nas circunstâncias em que tão perigosamente nos encontramos, com alarmes que se multiplicam diariamente, e verificações entregues aos meios habituais que frequentemente acrescentam a inquietação com a incerteza das conclusões, o perigo de que o processo da unidade-solidariedade europeia seja atingido por fraccionamentos e roturas anda a mostrar a face do directório. E o mais grave da amostragem, tendo presente a história dos descalabros a que conduziram todas as experiências do modelo, não está seguramente na capacidade demonstrada por algum ou alguns dos países assumirem o projecto, está sobretudo na circunstância de a imaginação andar longe das capacidades. Já temos recordado, a outros propósitos, como a composição do Conselho de Segurança da ONU, concebido como um directório da área, foi desde o início viciada por esta divergência entre as capacidades imaginadas e os factos do poder efectivo, que presidiram à escolha das potências com veto. O projecto foi posto entre parênteses pela ordem dos Pactos Militares, durante cerca de meio século, e, findo esse ameaçador intervalo, a União Europeia veio crescentemente chamando a atenção dos príncipes que nos governam para o facto de que o regionalismo se ia perfilando como o modo de recuperar presença e voz no concerto internacional que fosse possível reinventar. Não era de ignorar que havia necessidade de ter uma avaliação cuidada entre pretender ser uma potência com veto no Conselho de Segurança, usando a nobiliárquica titulação de superpotência, e ao mesmo tempo reconhecer a necessidade de assumir que no mundo em mudança também a união faz a força, uma regra que sobrevive ao destroçar da ordem velha. Os Fundadores da União Europeia, que tiveram a dolorosa experiência de ver o euromundo desabar e enfrentaram a necessidade de sobreviver para além dos escombros, tinham presente na memória e na realidade que assumiam para construir um novo futuro, o facto de que a ambição do directório, ou colectivo ou singular, estivera de novo entre as causas do desastre sofrido. O período de abundância que foi conseguido, com desvio dos princípios, com esquecimento apressado do desastre suicida, e com abuso de minguados recursos, não apenas conduziu ao desastre financeiro e económico em que nos encontramos, como o desastre é mais uma vez agravado pela distância entre a imagem que alguns dos parceiros da União conservam das suas próprias capacidades, e a gravidade dos desafios que os colocam à prova. O facto alarmante, especificamente enquadrável neste risco, está na espécie de coligação que se foi desenvolvendo entre a França e a Alemanha para enfrentar, não já a crise do mundo, mas apenas a da Europa, secundarizando os órgãos institucionais da União, mal regida por um aprovado Tratado de Lisboa, e declarando com assumida autoridade iluminada os caminhos a seguir para enfrentar as dívidas chamadas soberanas e o futuro. Não é apenas insuficiente pensar no futuro da Europa sem pensar no mundo circundante de que já não é o centro dominante, é excessivo pensar na Europa sem cuidar da vontade dos parceiros como se o futuro de cada um desses outros Estados pudesse ser desenhado num diálogo binário. A antropologia simplificadora da chanceler da Alemanha não é uma perspectiva suficiente para entender o futuro quando a complexidade do presente refria os prognósticos dos realmente especialistas, e talvez seja altura de meditar, na área da política em que tem autoridade mais reconhecida, que o seu companheiro Sarkozy está já confrontado com a insuficiência dos mercados, com a revolta da multidão que também chegou à Inglaterra, e que não melhora a posição a estes últimos o facto de serem membros com veto no Conselho de Segurança. Talvez, finalmente, e porque se trata do globalismo, seja altura de que a Assembleia Geral da ONU, e o seu Conselho Económico e Social, sejam chamados a pronunciar-se sobre o estado do mundo e da crise, com mais autoridade, esquecida, de que a de dois países envolvidos na crise europeia.
Adriano Moreira in DN online