Quando me propuseram falar novamente do Natal nesta série de conferências mensais, o primeiro título que me ocorreu foi este - «É Deus que nos pede esmola». Porque me veio à mente esta frase? Suponho que foi porque neste Natal há tanta gente que tem de recorrer à esmola e tanta gente que procura generosamente atender a essa dolorosa necessidade dos outros! Vi Nosso Senhor a pedir esmola também e a agradecer a esmola que Lhe dermos, a Ele directamente e a todos os que passam fome e com quem Ele Se identifica: «Porque tive fome e me destes de comer, sede e me destes de beber, estava nu e me vestistes…», enfim, porque «tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes…» (Mt 25, 35 e 40)
É um grande mistério, que a todos nos comove: o próprio Deus, Deus Criador e Omnipotente, a pedir e a agradecer esmolas das suas criaturas!
Porque me lembrei de dar este título para a conferência de Natal? Foi uma espécie de inspiração poética: como o primeiro verso de um poema. Assim costumam fazer os poetas, incluindo os maus poetas, como eu. Vem-nos à ideia um frase qualquer, quase sem querermos, e sentimos que fica à espera de desenvolvimentos; como se fosse uma semente a criar raízes no pensamento e a crescer dentro de nós, até se exteriorizar coerentemente… O poeta vê-se obrigado a segui-la; não pode fazer do primeiro verso o que quiser; tem de adivinhar o que essa frase entranha, até dar à luz o fruto correspondente.
Ora, o que queria eu dizer com essa frase? Queria dizer certamente o que está mesmo a dizer: que Deus nos pede esmola. É uma verdade estranha, mas é evidente; e, quanto mais evidente, mais estranha parece. Não veio Ele pedir-nos licença de entrar neste nosso mundo? Ele, que é o Senhor do mundo; Ele, «em Quem nós nos movemos, existimos e somos» (Act 17, 28); Ele que nos criou e nos mantém na existência; Ele, Deus todo-poderoso, não envia porventura um embaixador insigne, um Príncipe celestial, a pedir a uma menina de Nazaré a esmola de O receber no seu seio?
Que mistério maravilhoso! Estabelece-se um diálogo diplomático; ela pergunta em que condições o Senhor deseja ser concebido; é esclarecida; e, com a maior simplicidade, responde que sim. Sim, Senhor Embaixador, aceito Deus como meu Filho. Pode entrar no meu seio desde já. «Faça-se em mim, segundo a tua palavra» (Lc 1, 38).
Porque é que o Senhor é tão cerimonioso e delicado? Porque precisa de nos pedir licença para encarnar?
Reparai: que diferença há entre a filiação humana e a procriação animal? Entre a filiação humana e a procriação animal existe mesma diferença que há entre o homem e o animal: a consciência e a liberdade. A geração humana é consciente e livre; a procriação animal é inconsciente e fatal.
Nosso Senhor quis ser verdadeiramente «filho do homem», ou simplesmente, verdadeiro homem, entrando no mundo segundo uma autêntica e plena geração humana. Podia ter assumido natureza humana sem mãe nem pai, mas nesse caso seria para nós um extra-terrestre; teria uma natureza igual à nossa, mas não faria parte da nossa natureza. Não faria parte da humanidade que vinha salvar. Ou podia nascer de uma mulher, sem lhe pedir licença, mas, nesse caso, não teria verdadeira mãe, não seria verdadeiro filho nosso, da nossa raça; seria um intruso; a sua entrada no mundo seria uma violência divina.
As crianças que nascem, bem ou mal, não são intrusas, porque não tiveram oportunidade de querer nascer ou não; mas Jesus Cristo é o Verbo eterno; é anterior a toda a Criação; é uma Pessoa, livre e responsável pela sua própria vinda ao mundo; quis ser concebido e quis nascer no seio de uma mulher que O aceitasse de boa mente, no seu coração e no seu seio. Para isso, tinha de lhe pedir licença. Tinha de lhe pedir a esmola de uma perfeita maternidade humana.
E ela tinha de saber Quem ia gerar; tinha de saber que ia conceber a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, porque se julgasse que Ele era mais um homem qualquer, estaria enganada; o seu Fiat não seria uma aceitação autêntica do Filho de Deus. Seria apenas «procriadora» de Deus humanado, como alguns hereges afirmaram, recusando a Nossa Senhora o título de Theotokos, de Mãe de Deus; seria só Mãe de Jesus, Mãe do homem Jesus, não da Segunda Pessoa da Trindade. Deus não tem mãe, argumentam… De facto, a Santíssima Trindade não tem mãe, mas a Pessoa do Verbo Encarnado tem. Porque chamamos mãe àquela que gerou alguém, alguém que é pessoa, um «eu» composto de corpo e alma; ora o «eu» de Jesus é o «Eu» divino, o Eu da Pessoa do Verbo. Jesus não possui dois «eus», um humano e outro divino, mas um só: o Eu de Deus. Possui duas naturezas, mas é uma só Pessoa, a Pessoa do Verbo, verdadeiro e único Deus com o Pai e o Espírito Santo. Logo, Maria gerou no seu seio o próprio Deus; logo, Maria é Mãe de Deus. Negar-lhe esse título seria negar a personalidade divina de Jesus, ou atribuir-Lhe duas personalidades, o que vai contra tudo o que nos diz o Evangelho.
Para isso, Nosso Senhor fez-Se verdadeiro pedinte. Pediu primeiro um coração materno e um seio materno. Como dizia antes, as crianças não pedem a sua própria concepção, porque só existem a partir dela; mas Cristo é anterior à sua própria concepção, e pediu-a expressamente. E continuou a pedir: pediu para vir ao mundo dentro de uma família, e isso já foi mais difícil, porque José demorou a compreender esse pedido. Foi preciso explicar-lhe que, embora Ele não fosse filho seu pela carne, queria ser Filho seu por vontade divina… E também José acabou por aceitá-Lo como verdadeiro pai. Como dizia Santo Agostinho, «à piedade e caridade de José nasceu o Filho da Virgem Maria, que é o mesmo Filho de Deus». (Sermo 51, 30). Quem afirma que não é filho de José por não ter sido gerado carnalmente por ele, explica o santo doutor, dá mais importância à libido do que ao amor, quando o amor é que determina a paternidade humana (Cf. idem, 26). Enfim, assim como Maria não O gerou pela carne, mas pelo Espírito Santo, também José O recebeu do Pai pelo seu Espírito de Amor.
Pediu um pai, pediu uma família, pediu toda uma parentela, como qualquer homem recebe; e pediu que O deixássemos nascer, e uma casa onde vir ao mundo… Essa foi a primeira esmola que Lhe recusámos. Fechámos-Lhe todas as portas. E teve de vir à luz na escuridão de uma toca de animais!
Coitadinho de Nosso Senhor!, dizemos nós agora, ao contemplá-Lo no presépio. Tem algum sentido esta exclamação? Sim, é a expressão da nossa misericórdia; misericórdia é a virtude que consiste na compaixão pelas carências alheias e nos leva a socorrer quem padece alguma necessidade; é a virtude que nos leva a partilhar a miséria dos outros e a procurar remediá-la; da misericórdia é que procede a esmola; e a primeira esmola é precisamente a compaixão, a companhia de outrem no seu sofrimento. Mas isto remedeia alguma coisa? Com certeza, sobretudo quando uma das coisas de que o próximo necessita é o nosso amor.
Ora, o que buscava Jesus Cristo no mundo não eram certamente as coisas materiais, porque d’Ele é tudo o que existe; o que buscava e continua a buscar é o nosso coração, o nosso amor. Isso era o que mais queria e vinha pedir-nos. Se lho damos agora, estamos a remediar, de facto, o que de nós esperava nessa altura.
Como Deus, não precisava de nós; mas, como Homem, sim. Cada homem precisa dos outros para viver humanamente; somos seres relacionais, sociais; não somos naturezas separadas, como os Anjos; pertencemos a uma só natureza, e só com os nossos semelhantes podemos conhecer-nos, desenvolver-nos e ser felizes.
Mas, além disso, como autêntico Homem, também precisava de bens materiais: de um sítio onde nascer, de uma terra onde viver, onde brincar quando era criança, onde aprender, onde trabalhar… Precisava de uma sociedade onde O aceitassem dignamente… Coitado de Nosso Senhor, que também foi expulso do seu país, sem mais protecção do que a dos seus pais durante o exílio no Egipto! E quanta esmola teve de aceitar de quem os terá socorrido ao longo desta aventura terrível!...
No fundo, desde que quis ser verdadeiro Homem, teve de sujeitar-se a esta condição humana de esmolar. Não há ninguém que se baste a si mesmo. Como fez notar o Santo Padre (N. 'Spe Deus': Bento XVI) na encíclica «Caritas in Veritate», a sociedade não poderia existir nem desenvolver-se sem «gratuidade», isto é, sem as obras de misericórdia, sem o espírito de serviço, sem o amor. Graças a Deus, o mundo não progride pelo egoísmo, nem por frias relações políticas, administrativas ou comerciais; se progride, é porque há muito amor, muita gratuitidade, entre nós. E, se se degrada, é por falta de amor. A grande lei do progresso não é a do proveito próprio, mas a do gosto de servir o próximo. As próprias exigências de justiça que hoje se reclamam a torto e direito começaram por ser invenções da caridade. Como se costuma dizer: «a caridade de hoje é a justiça de amanhã».
Nosso Senhor veio pedir o que, por obrigação de justiça, Lhe devíamos dar. Veio pedir como esmola o que a criatura deve por justiça ao Criador. Todos temos essa experiência: à medida que resolvemos dar algo mais de nós a Deus, apercebemo-nos de que Lho devíamos ter dado desde sempre; sempre que Lhe damos alguma atenção, alguma coisa, logo nos sabe a pura e simples restituição; pois, que poderemos dar-Lhe que não Lho devamos, que não tenhamos recebido d’Ele?
Esta é a sua pedagogia: pedir-nos por favor e misericórdia aquilo que tem o mais estrito direito de exigir-nos, e que é amá-Lo sobre todas as coisas, com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças.
O amor: aí está outra grande palavra, muito gasta e muito equívoca. O que é o amor? O amor não é um sentimento; pode verter-se em tantos sentimentos, de alegria ou saudade, de ciúme ou admiração, de receio ou audácia… Amor é vontade de união; é não querermos separar-nos; e, por outro lado, é um fruto e o fim da liberdade, como S. Josemaría várias vezes o disse (Cf. por ex. «Amigos de Deus», 26-27 ou «Una libertad para ser vivida», Cobel Ed. 2010): pela liberdade somos diferentes uns dos outros; pela diferença, construímo-nos como pessoas, não como animais gregários; nós não nos relacionamos por grupos, «aos molhos», mas cada um com cada um, com relações singulares, pessoais, únicas, diferentes, irrepetíveis. E a isso é que se chama amor. Quando amamos alguém, ninguém o pode substituir, nem ele nos pode substituir por ninguém.
(Façamos um parênteses: as relações pessoais podem ser de amor, mas também podem ser de ódio, de indiferença, de antipatia… O certo é que a relação afectiva de cada pessoa com outra é sempre uma relação singular, diferente das outras relações afectivas com os demais. A liberdade está feita para o amor, mas permite todo o tipo de afectos, maus e bons. Assim como a inteligência está feita para a verdade, mas pode errar, a liberdade está feita para o amor, para o bem, mas pode preferir o mal. Seja como for, a liberdade leva-nos a estabelecer com qualquer pessoa uma relação única e irrepetível, que pode variar, mas continua a ser uma relação específica, individualizada, com cada pessoa, incluindo o próprio Deus e cada uma das Pessoas divinas).
Deus é pessoal, tri-pessoal, personalíssimo, e por isso a sua relação connosco é com cada um. Gosto muito de um cântico que vem a dizer: «Ninguém te ama como Eu». Gosto muito, porque é uma verdade de dois gumes: eu sou único para Ele; Ele ama-me como não ama ninguém; e eu posso dizer-Lhe o mesmo: «Ninguém te ama como eu». Amo pouco, tenho muita pena de Te amar tão pouco, mas uma coisa é verdade: o meu amor por Ti, meu Deus, é diferente de todos, porque é amor pessoal: ninguém Te ama como eu… Tu és todo meu; não precisas de Te dividir para me amares; e eu também queria ser todo teu; também queria ser teu a todo o momento em tudo quanto faço e quanto sou!
O amor, dizia, é fruto da liberdade; e, por isso, falar de «amor livre» é uma tautologia ou um disparate. No fundo, é um eufemismo para defender o contrário do amor, que é a fuga ao compromisso, à entrega, à doação. É pretender amar por egoísmo. É uma quadratura do círculo...
O amor é fruto e fim da liberdade. Foi para isso que Deus nos fez livres. Logo, não esperemos de Deus nenhuma coação, nenhuma violência, mas, pelo contrário, o mais suave pedido da esmola do nosso amor. Então, que sentido têm tantas ameaças de castigo e perdição que lemos na Sagrada Escritura, contra quem Lhe desobedecer? O sentido que Ele mesmo explica em várias passagens das mesmas Escrituras: haverá um filho a quem o pai não castigue? «Eu, aos que amo, repreendo e castigo», diz numa das cartas do Apocalipse (3, 19). O castigo implica precisamente o respeito pela liberdade: só se castiga quem procede mal, sendo livre para proceder bem. Se não fôssemos livres, não seríamos responsáveis pelos nossos actos ou omissões; logo, não merecíamos prémio nem castigo. Tanto o prémio como o castigo pressupõem a nossa liberdade. Violência seria aniquilar-nos.
A ira de Deus pela nossa falta de amor chega a ser mais comovente do que o prémio que nos promete se O amarmos: o prémio tem o carácter de generoso agradecimento, que podíamos entender como simples manifestação da sua infinita bondade; o castigo tem o carácter de uma grande necessidade Sua. A ira divina pelos nossos pecados significa que para Ele nós somos importantíssimos; que nos ama mais do que nos amamos nós a nós mesmos; que está louco de amor por cada um de nós. «Filocaptus», das suas criaturas, como dizia Santa Catarina.
Nosso Senhor não foi um mendigo; inclusivamente, dava esmola aos pobres, como sabemos; mas aceitou as esmolas das santas mulheres que O acompanhavam; aceitou a hospitalidade de muita gente que O convidava; agradeceu a generosa esmola da pobre viúva que lançou na caixa do Templo as suas duas últimas moedas; deixou-se ajudar por Simão Cireneu a levar a Cruz; não deixou de provar a esmola do vinho misturado com mirra que lhe ofereceram no Calvário; e por fim, aceitou a esmola de um sepulcro e os perfumes com que o embalsamaram… «Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza» (cf. 2 Cor 8, 9), diz S. Paulo. Como é que a sua pobreza nos enriquece? Precisamente por nos pedir esmola. De repente, o homem vê-se mais rico do que Ele! Capaz de Lhe dar algo de que Ele precisa! Mas de que é que Ele precisa? Do nosso coração, da correspondência ao seu amor. Só nós Lho podemos dar.
Mas, se Ele é o tesouro escondido, a pérola preciosíssima, pela qual vale a pena vender tudo para a possuir! Se Ele é que vale, e nós não valemos nada! É verdade; mas também é verdade que nós também valemos muito para Ele, e aqui está o mistério. Se Ele é o tesouro e a pérola, nós somos para Ele o peixe que quer pescar, e Ele a rede de arrasto que nos busca apaixonadamente e quer apanhar, ainda que recolha ao mesmo tempo connosco tanta coisa inútil que nos envolve, tanto lixo das nossas fraquezas, tanta miséria que nos acompanha. Eu nunca vi nascer uma criança e não tenho vontade nenhuma de assistir a um parto. Mas o que me consta é que os meninos vêm envolvidos numa membrana e todos sujinhos de sangue. E, no entanto, a mamã e o papá olham para ele encantados, e daí a pouco toda a família se debruça sobre o menino e o acha parecidíssimo aos mais diversos parentes… E ficam todos contentes, se ele nasce em boas condições: perfeitinho, como se diz. Também Nosso Senhor não se importa com as nossas fraquezas, desde que nasçamos «perfeitinhos», ou, pelo menos vivos (pela graça) ainda que precisemos de passar pela incubadora algum tempo. (Por incubadora refiro-me ao Purgatório). Nós somos a esmola que nos vem pedir; nós próprios e quantos mais nós possamos oferecer-Lhe.
Alguém dizia que a vida tem três fases: primeiro acreditas no Pai Natal; depois deixas de acreditar no Pai Natal; e por fim és tu mesmo o Pai Natal. Traduzido para melhor cristão: primeiro recebes prendas do Menino Jesus; depois, já crescido, não esperas presentes do Menino Jesus; e por fim, descobres que tens de ser tu a dar prendas ao Menino Jesus.
Deus faz-Se Menino para que nós Lhe demos a esmola do nosso amor. Faz-Se mendigo do nosso coração. E com essa pobreza enche-nos do seu amor: «Enriquece-nos com a sua pobreza», diz muito bem o Apóstolo. Enriquece-nos, levando-nos a trocar um coração de pedra, um coração egoísta, por um coração de carne, sensível ao seu amor e às necessidades do próximo. E descobrimos que nos temos de dar a Ele como Ele Se nos dá a nós. Feito Menino, obriga-nos a adivinhar o que, em silêncio, nos pede: pede-nos almas que O conheçam e amem e por sua vez chamem outros ao Presépio, à Sua Família, que é a Igreja. Que melhor presente de Natal Lhe podemos dar do que a nossa amizade e a amizade daqueles que nos rodeiam?
Mons. Hugo de Azevedo, Texto da Conferência do Natal (4 de Dezembro de 2010)
(Fonte: site do Oratório São Josemaria em http://oratoriosjosemaria.com.sapo.pt/diversos/confnatal2010.htm)