São Marcos dedica uma parte inteira do seu Evangelho ao ensinamento dirigido aos discípulos. É como se, a meio do caminho para Jerusalém, Jesus quisesse que os seus renovassem a sua opção, sabendo que este seguimento comportaria momentos de provação e sofrimento. O evangelista narra aquele período da vida de Jesus, lembrando que Ele anunciou, em três ocasiões, a sua paixão; e eles, por três vezes, expressaram a sua perplexidade e resistência, e o Senhor quis deixar-lhes um ensinamento, em cada uma das três ocasiões. Acabamos de ouvir a segunda destas três sequências (cf. Mc 9, 30-37).
A vida cristã sempre atravessa momentos de cruz e, às vezes, parecem intermináveis. As gerações passadas viram gravar a fogo o tempo da ocupação, a angústia daqueles que eram deportados, a incerteza por aqueles que não voltavam, a vergonha da delação, da traição. O livro da Sabedoria fala-nos do justo perseguido, daquele que sofre insultos e tormentos pelo simples facto de ser bom (cf. 2, 20-20). Quantos de vós poderiam contar em primeira pessoa, ou na história de algum parente, esta mesma passagem que foi lida? Quantos de vós viram também vacilar a sua fé, porque Deus não apareceu para vos defender; porque o facto de permanecer fiéis não foi suficiente para que Ele interviesse na vossa história. Kaunas conhece esta realidade; toda a Lituânia o pode testemunhar sentindo arrepios à simples nomeação da Sibéria, ou dos guetos de Vilna e Kaunas, entre outros; e pode corroborar em uníssono com o apóstolo Tiago, na passagem da sua Carta que escutamos: cobiçam, matam, invejam, lutam e fazem guerra (cf. 4, 2).
Mas, os discípulos não queriam que Jesus lhes falasse de sofrimento e de cruz; não querem saber nada de provações e angústias. E São Marcos lembra que o interesse deles ia para outras coisas: voltavam para casa discutindo sobre qual deles seria o maior. Irmãos, o desejo de poder e glória é o modo mais comum de se comportar daqueles que não conseguem curar a memória da sua história e, talvez por isso mesmo, não aceitam sequer comprometer-se no trabalho do momento presente. E então discute-se sobre quem mais brilhou, quem foi mais puro no passado, quem possui mais direito do que os outros a ter privilégios. E assim negamos a nossa história, «que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 96). É uma atitude estéril e vã, que se recusa a envolver-se na construção do presente, perdendo o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel. Não podemos ser como aqueles «peritos» espirituais que se limitam a julgar de fora e passam o tempo inteiro a falar sobre «o que se deveria fazer» (cf. ibid., 96).
Sabendo Jesus o que pensavam, propõe-lhes um antídoto para estas lutas de poder e a recusa do sacrifício; e, a fim de dar solenidade ao que está para dizer, senta-Se como um Mestre, chama-os e faz um gesto: coloca uma criança no centro; um rapazinho que habitualmente ganhava alguns trocados prontificando-se para recados que ninguém queria fazer. Hoje, nesta manhã de domingo, quem colocará aqui no meio? Quem serão os mais pequenos, os mais pobres entre nós, que devemos acolher cem anos depois da nossa independência? Quem não tem nada para nos retribuir, para tornar gratificantes os nossos esforços e as nossas renúncias? Talvez sejam as minorias étnicas da nossa cidade, ou os desempregados que são forçados a emigrar. Talvez sejam os idosos abandonados ou os jovens que não encontram um sentido na vida, porque perderam as suas raízes. «No meio» significa equidistante, de modo que ninguém pode fingir que não vê, ninguém pode afirmar que «é responsabilidade de outros», porque «eu não vi» ou «estou demasiado longe». Sem protagonismos, sem querer ser aplaudidos ou os primeiros. Lá, na cidade de Vilna, tocou ao rio Vilna oferecer as suas águas e perder o nome relativamente ao Neris; aqui, é o próprio Neris que perde o nome oferecendo as suas águas ao Nemunas. É precisamente disto que se trata: ser uma Igreja «em saída», não ter medo de sair e gastar-se mesmo quando parece que nos dissolvemos, não ter medo de nos perdermos atrás dos mais pequenos, dos esquecidos, daqueles que vivem nas periferias existenciais. Mas sabendo que aquele sair implicará também em determinados casos deter o passo, colocar de lado anseios e urgências para saber olhar nos olhos, escutar e acompanhar quem ficou na beira da estrada. Às vezes, será necessário comportar-se como o pai do filho pródigo, que permanece junto da porta à espera do seu regresso, para lhe abrir logo que chegue (cf. ibid., 46); ou como os discípulos que devem aprender que, ao receber um pequenino, é o próprio Jesus que Se recebe.
Eis porque nos encontramos hoje aqui, ansiosos por receber Jesus: na sua palavra, na Eucaristia, nos pequeninos. Recebê-Lo para que Ele reconcilie a nossa memória e nos acompanhe num presente que continue a apaixonar-nos pelos seus desafios, pelos sinais que nos deixa; para que O sigamos como discípulos, porque nada há de verdadeiramente humano que não tenha ressonância no coração dos discípulos de Cristo e, assim, sentimos como nossas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e dos atribulados (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 1). E porque, como comunidade, nos sentimos verdadeira e intimamente solidários com a humanidade – desta cidade e de toda a Lituânia – e com a sua história (cf. ibid., 1), queremos doar a vida no serviço e na alegria e, assim, fazer saber a todos que Jesus Cristo é a nossa única esperança.