|
Christian Dirce de Henryk Siemiradzki (1897) - Museu Nacional - Varsóvia - Polónia |
Os anos do governo de Nero, no
início da década de 60 depois de Cristo, somaram desgraça sobre desgraça.
Problemas na fronteira do império, o temporal que afundou a esquadra no
Adriático, o incêndio devastador na cidade de Roma e, ligado a tudo isto, a
contestação popular e as manobras no palácio. Nero reagiu identificando a raiz
do problema e pondo a solução em prática.
O problema eram os cristãos. Não
que eles tivessem soprado o vento que afundou a esquadra, ou atiçado as
labaredas de Roma. O problema era eles existirem. Roma imperial era próspera
até os romanos se começarem a converter e, portanto, voltaria à prosperidade
anterior quando o cristianismo fosse eliminado da face da Terra.
O aniversário do Imperador, no
ano 64, foi escolhido como o dia da redenção. Numa ampla propriedade na margem
direita do rio Tibre, englobando a colina Vaticana, organizou-se um festival
nunca visto. Competições de cavalos, lutas sangrentas, e vinho, e luxúria, e
iguarias à descrição, e tudo sem medida. Finalmente, como momento culminante, a
matança de todos os cristãos. Morreram tantos, que foi preciso variar as formas
de martírio para não ser uma coisa cansativa. S. Pedro, o primeiro Papa, foi
crucificado de cabeça para baixo; muitos arderam como archotes para iluminar um
espectáculo nocturno.
Na madrugada do dia seguinte,
parecia que o cristianismo tinha acabado na cidade de Roma. Sobraram muito
poucos, que sepultaram os mortos e recolheram com especial devoção o cadáver de
Pedro.
Pouco ficou da incipiente comunidade
cristã. Entre os poucos que sobreviveram àquele dia, bastantes morreram nos dias
seguintes e nas semanas seguintes. A Paulo, que escapou à matança por estar na
prisão, cortaram a cabeça ainda antes de aquele ano acabar.
Aparentemente, não havia mais
nada a acrescentar à história generosa das primeiras conversões cristãs. Tudo
tinha acabado.
30 ou 40 anos antes, a surpresa
de seguir Jesus, de O ouvir responder às questões mais difíceis, de assistir
aos milagres mais incontestáveis e, sobretudo, o deslumbramento perante um
horizonte maravilhoso da sua pregação tinham terminado na forma horrorosa de um
suplício na Cruz.
Desde então, 30 ou 40 anos tinham
passado, em que a primeira geração de cristãos anunciou por todo o mundo a
Ressurreição e foi tal a alegria do testemunho e a abundância da graça, que
muitos judeus e pagãos se converteram.
Agora, pela segunda vez, tudo
tinha acabado. Quase tudo. No rescaldo da festança imperial, quem se lembraria
de bons momentos? Que restava do sonho árduo, mas excelente, de tocar Deus, de
conviver com Ele?
Não se extinguiu completamente.
Subsistiu um ínfimo fio de vida. A Pedro sucedeu Lino, que também foi mártir, e
depois Cleto, Clemente, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telésforo, Higino... até
Francisco. Àqueles primeiros cristãos, despedaçados por causa da superstição e
da manha política do Imperador todo-poderoso, sucederam novos cristãos e mais
mártires. 250 anos mais tarde, Tertuliano resumia a experiência dos primeiros
séculos: «o sangue dos mártires foi semente de cristãos». Nem Tertuliano
presumia de compreender este enigma, nem vale a pena tentarmos o esforço: o que
aconteceu não foi o prémio da eloquência, nem da inteligência, nem do poderio
dos homens. Foi, à letra, o paradoxo evangélico, que continua a deixar o mundo
perplexo: «se o grão de trigo não morre, fica infecundo; mas, se morre, dá
muito fruto».
Na sexta-feira passada, comemorou-se a solenidade de
S. Pedro e S. Paulo, no sábado comemorou-se a multidão de mártires que os
acompanharam naquele ano de loucura em que tudo parecia ter acabado; hoje,
Domingo, comemoramos a Ressurreição de Cristo e o mistério da Igreja, que
consiste em Ele ter sempre a última palavra.
José Maria C.S. André
30-VI-2018
Spe Deus