Este
tema conduz-me insensivelmente a uma terceira reflexão. Quando revolvo em mente
o contraste entre a violência que implicou o fim do nazismo e a suavidade com
que se dissipou o comunismo, sinto a tentação de estabelecer comparações e
concluir que este teve uma morte serena porque na sua raiz jazia uma ideia de
justiça social, ao passo que aquele acabou em tragédia porque radicava da mera
soberba de um povo e da sede de poder de um homem. É, porém, pensamento em que
não quero consentir, pois seria uma afronta ao Deus escondido, cujos desígnios
nos são opacos.
A tentação do providencialismo é
muito antiga: já na época de Constantino escreveu Lactâncio um tratado Sobre a morte dos perseguidores, em que
se esforçava por provar que todos os imperadores que perseguiram a Igreja
acabaram por morrer de morte violenta. E em águas semelhantes navegou na centúria
seguinte o primeiro escritor conhecido do território português, Paulo Orósio,
autor de uma História contra os Pagãos.
Dele escreveu É. Amann no Dictionnaire de
Théologie Catholique: "com um robusto otimismo, ele imagina ter quase
penetrado nos desígnios do Eterno; pelo menos, lê claramente, até nos mais pequenos
detalhes da história de cá-em-baixo a intervenção de lá-em-cima e a sua significação".
Nos séculos XVI e XVII essa maneira de olhar a História fez escola, facultando
bastas vezes aos historiadores uma explicação fácil para o inexplicável.
Se da metodologia histórica esse
providencialismo primário despareceu praticamente, na mentalidade do vulgo
continua ainda a grassar. Recebi há poucos dias um texto, dos que circulam na internet, em que o autor se interrogava
por que motivo, sendo a epidemia um castigo de Deus, fora aparentemente
superada já na China, sem grande dificuldade, ao passo que no resto do mundo
continuava a causar dano: a punição divina devia atingir sobretudo os países
que têm regimes ateus, como é o caso da China…
Aventam outros que Deus estará
irado com a imoralidade que — com a conivência dos poderes públicos, que
legalizam e até fomentam práticas como o aborto, o casamento homossexual e a
eutanásia — invadiu a nossa sociedade, que não só peca como, o que é bem mais
grave, perdeu a noção do que é pecado. Colhemos por isso o que semeámos…
O Antigo Testamento fala-nos, de
facto, de penas infligidas por Deus aos pecadores, individuais ou mesmo
coletivos, como foi nomeadamente o caso de Sodoma e Gomorra; e aí, porque é a
Escritura que o diz, podemos afirmar que andou o dedo de Senhor. Podemos também
afirmá-lo nos casos em que uma pessoa ou uma coletividade arca com as
consequências naturais, ainda que desproporcionadas, dos seus atos — pois a
ordem da natureza é obra de Deus e não é impunemente que se infringem as suas
leis: fulano morreu de pneumonia porque foi tomar banho ao mar em Janeiro,
sicrano quebrou a espinha porque se pôs a escalar um pico montanhoso sem tomar
as devidas precauções, e assim por diante. Fora de tais casos é inaceitável
presunção afirmar que fulano "teve o castigo que merecia" ou que
beltrano "não merecia sofrer o que sofreu". Só o Deus que perscruta
os corações e os rins sabe o que cada um merece!
Melhor do que investigar os
desígnios de Deus é exclamar com S. Paulo: "Ó abismo da riqueza da
sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus decretos e
incompreensíveis suas vias! (Rom 11, 33).
Enviou-me há dias um dos meus
parentes de Goa um judicioso comentário sobre a atual crise escrito por Eugénio
Viassa Monteiro, um goês que presentemente
ensina em Bombaim, em que cita extensamente um texto redigido por Anne Graham —
filha do famoso pregador batista dos Estados Unidos Billy Graham (1918-2018) —
a propósito do furacão Katrina, mas
que se pode aplicar a qualquer outra catástrofe natural. Apreciei sobretudo a
delicadeza com que esta observava:
Penso que Deus
estará muito triste com tudo isso, como nós estamos, mas durante anos estivemos
a dizer-Lhe para sair das nossas escolas, para sair da vida pública, para sair
das nossas vidas… Como gentleman que
Ele é, penso que tranquilamente se afastou.
A última frase parece um eco do
cântico de Moisés no Deuteronómio
(32, 20): "esconderei deles a Minha face, e verei o que lhes sucede, pois
são uma geração perversa, filhos infiéis". Seja como for, a imagem de um
Deus que gentilmente se retira, deixando a natureza agir conforme as suas leis,
é de longe preferível à de um Deus vingador que castiga prontamente as ofensas
que se lhe façam. Contudo, a explicação que a autora dá para esse afastamento
do Senhor propende um tanto ou quanto para aquele providencialismo ignaro da
transcendência de Deus, que acima criticávamos a Paulo Orósio:
À luz de alguns acontecimentos como ataques terroristas,
tiros nas escolas, etc., fico a pensar que tudo começou quando X. X. se
lamentou do absurdo das orações nas nossas escolas. E nós dissemos, OK, não há
mais orações nas escolas!
Depois, alguém se lembrou que não fazia sentido ler
a Biblia na escola (a Biblia diz: não matarás, não roubarás e… ama o teu próximo
como a ti mesmo). E nós dissemos, OK. Não há Bíblia!
O Dr. B. S. disse que não devemos bater nas crianças
quando se portam mal, porque podemos ferir as suas personalidades e reduzir a
sua autoestima (o seu filho suicidou-se). E nós pensámos: um perito sabe do que
fala. E dissemos, OK! Está bem. Agora perguntamo-nos porque as nossas crianças não tem
consciência do que está bem e do que está mal? E friamente dão um tiro num
estrangeiro, ou num colega seu de aula e nelas próprias.
Se O escorraçamos das nossa
vidas, das escolas, da vida pública… o que é que podíamos esperar, senão que as
forças do mal tivessem livre curso? Inevitavelmente
concluímos que “colhemos o que semeámos”. E perante as aflições podemos
perguntar-nos, porque Deus deixa que isso aconteça?
Estou também eu convencido de que
dentro em breve a nossa sociedade irá pagar caro pelo seus erros; mas não
exatamente pela intervenção de um Deus que se vinga, antes pelo mecanismo do
homem que se afoga por persistir em ir para fora de pé sem ter aprendido a
nadar. Uma juventude educada no hedonismo, no culto da autossatisfação, na
religião dos direitos individuais, sem que jamais se lhe fale dos seus deveres,
não estará amanhã preparada para enfrentar situações de crise como a que hoje vivemos,
em que se requere altruísmo, espírito de sacrifício e sujeição do interesse
individual ao bem comum. Disso tivemos uma amostra há dois ou três dias atrás:
em Miami, na Florida, um grupo de jovens persistiu em realizar a festa, bem
regada com cerveja, que tinham aprazada; resultado: 20 infetados e dois mortos…
É nesse sentido que entendo a
citação de Alexander Soljenitize com que Anne Graham remata o seu texto:
Consagrei-me
durante 50 anos ao estudo. Li centenas de livros, reuni muitos testemunhos
pessoais, publiquei oito obras. Hoje, se tivesse de resumir o mais brevemente
possível a verdadeira causa do nosso problema, só teria uma explicação: o homem
esqueceu-se de Deus… E se me pedissem que dissesse claramente qual a maior
ameaça, ainda assim não acharia outra coisa para dizer, senão que o homem se esqueceu
de Deus.
Aprovo assim por isso inteiramente
o que se pode considerar a conclusão que de tudo isto retira o meu amigo de
Bombaim, a quem devemos o comentário:
A atual crise
do vírus mostrou ao homem a sua pequenez… tudo quanto sabe e fez, é zero, nada,
incapaz de dominar um miserável vírus! E talvez isso o leve a considerar como a
sua arrogância fez expulsar o Criador da sua vida, pondo-O sob suspeita. Talvez
seja este o modo de nos trazer à realidade, à situação de criaturas, carentes
da proteção do Criador.
Esta conclusão vem assim a coincidir quase inteiramente
com um belo
ensinamento do ancião Emiliano, arquimandrita do mosteiro de Simonópetra, no
Monte Athos, falecido há pouco mais de um ano:
A doença é uma visita de Deus, uma visita divina.
A doença humilha-nos, ensina-nos, reforma-nos. Desperta-nos para a realidade e
torna-nos capazes de discernir o que é realmente importante e de valor. Não é
um castigo, mas uma visita divina para nossa educação e correção
(continua, são no total VII reflexões)