O turbilhão que se desenrola no Mediterrâneo, e que fez decidir a intervenção da NATO na Líbia, ao mesmo tempo que as manifestações populares se desenvolvem por outros vários países, inspirou a já afirmada certeza de que o modelo democrático, de origem ocidental, fará caminho até ao final estabelecimento desejado de sociedades civis pacíficas e governos competentes. Faltam porém análises suficientemente esclarecidas e fundadas sobre a compatibilidade dos Livros Santos, que marcam as culturas fixadas no Mediterrâneo, e os princípios políticos que dão sentido à democracia ocidental. E acontece que os factos são progressivamente exigentes dessa meditação orientadora, não parecendo suficiente a dogmática conclusão de que a democracia política é um património da Humanidade, toda vinculada ao modelo proposto pela ONU como paradigma mundial.
Esta afirmação já teve desmentidos suficientes para que não se confundam os valores proclamados com o perfil da realidade que confrontam, bastando ter em conta os cinquenta anos de guerra fria entre potências que todos assinaram a Carta da ONU.
No caso que nos toca pela proximidade, que é o do Mediterrâneo em desordem, o Egipto chama gritantemente a atenção para a necessidade de não esquecer a prudência na defesa do projecto apoiado pelos ocidentais e ao mesmo tempo avaliação das possibilidades ou reservas, designadamente de transição e tempo, da sua aplicação. Na Catedral Copta do Cairo, ao realizar-se o funeral dos mortos causados pelas catástrofes que se verificaram no dia 9 deste mês, e que toda a imprensa mundial considerou graves, sendo a cerimónia presidida por Chenuda III, ficou evidente que algum fanatismo islamita não deixa de acompanhar a resistência à reclamação copta de ter a liberdade de levantar igrejas.
Isto mostra que a chamada revolução egípcia da Praça Tahrir, que foi entendida como procurando estabelecer uma sociedade aberta e livre, não apenas obriga a avaliar em que medida a intolerância é uma componente do movimento, e em que medida, o que ainda parece mais preocupante, dirige a intolerância contra os cristãos. A única garantia visível estará na determinação das autoridades responsáveis pelo complexo processo em marcha, e que se encontraram perante a necessidade de impedir que tal manifestação esporádica viesse a servir de rastilho para um desacordo mais profundo e inquietante.
Um dos factos que algum noticiário evidencia é que no Egipto já não existem judeus na sequência das guerras árabe-israelitas, uma comunidade milenar na terra que recebeu a Sagrada Família. Como sempre os comentários que movem as opiniões públicas não assentam necessariamente no conhecimento dos factos, e nesta circunstância as coisas ainda serão mais complexas, vista a dificuldade de fazer coexistir liberdades com revolução.
As acusações contra os militares são claras da parte dos cristãos, e a União Europeia não deixou de condenar a violência, pedindo "protecção para todas as diversas religiões". Quanto a estas, convém ter presente que a Igreja de Alexandria foi fundada por S. Marcos, anos depois da morte de Jesus, e que o seu corpo está na cripta da sua Igreja Patriarcal. Depois da conquista do Cairo, em 1174 por Saladino, a comunidade viveu dispersa, e o seu número é incerto. Mas o que não é incerto é que ou a leitura dos livros santos assegura a paz ou o fanatismo terá difícil convívio com a democratização.
A tese do choque das civilizações, que a ONU procura remeter para os arquivos em nome do respeito recíproco, e não da simples tolerância, ganha de novo uma relevância que só agrava as condições anárquicas do Mediterrâneo, que enfraquece o projecto da Euráfrica solidária, que acentua a difícil problemática da coexistência entre os princípios da democracia ocidental e os dogmatismos muçulmanos. E que alerta os governos europeus para a eventual exigência de reorganizar os orçamentos para responder à imprevisibilidade da situação.
Adriano Moreira in DN online