Faz agora 50 anos, o Papa Paulo VI viajou à Terra Santa, depois de muitos séculos em que nenhum Papa se afastou dos arredores de Roma, menos ainda para voltar àquela terra onde Jesus viveu. A formação do Estado de Israel tinha aberto um conflito com os palestinianos, que habitavam o território até serem expulsos pelos judeus, e com os árabes dos países limítrofes. Toda a região vivia em estado de guerra latente e Paulo VI queria a paz. Além disso, queria acabar a inimizade milenar que opunha a Igreja ortodoxa e a Igreja católica.
Um mês antes da partida (4 de Dezembro de 1963), Paulo VI surpreendeu os participantes no Concílio Vaticano II anunciando-lhes a viagem: ia partir para a Terra Santa «em espírito de devota oração, de renovação espiritual, para oferecer a Cristo a sua Igreja; para chamar os Irmãos separados a esta Igreja, una e santa; para implorar a misericórdia divina em favor da paz».
A televisão, a rádio e as possibilidades de comunicação das agências internacionais transformaram o intenso ritmo daqueles primeiros anos de pontificado num corrupio de notícias. Sucessivos acontecimentos inesperados prendiam a atenção do mundo inteiro. O Papa é eleito em finais de Junho, reabre o Concílio Vaticano II interrompido com a morte de João XXIII, e no início de Janeiro parte para esta viagem inédita fora de Roma. As discussões conciliares já eram, só por si, uma fonte inesgotável de enredo.
De um modo geral, as notícias de Roma difundiam-se a partir de meios de comunicação muito críticos do catolicismo, a maioria dos quais propriedade de capitais protestantes, judaicos ou ligados a ditaduras comunistas. Por causa disso, apesar de se falar tanto de religião, nem Deus nem a fé suscitavam muito interesse, o destaque ia para os pequenos escândalos, as posições teológicas em disputa na Aula Conciliar, os casos pessoais. Na verdade, nem sequer as doutrinas teológicas interessavam às agências noticiosas, a não ser como símbolo de manobras de poder.
O Papa Paulo VI, recém-eleito, estava a par de tudo isto, mas decidiu ignorar os meios da intriga mediática e lançar-se a evangelizar o mundo. Tudo podia correr mal, quando partiu, na fria madrugada de 4 de Janeiro de 1964, do aeroporto de Roma. A primeira etapa foi Amam, na Jordânia, país muçulmano. Daí, peregrinou às margens do Jordão, a Betânia, a Jerusalém, dominada pelo exército israelita, a Nazaré, a Cafarnaum, a Tagba onde Cristo colocou Pedro à frente da sua Igreja, ao monte das Bem-aventuranças, ao monte Tabor e à gruta do presépio em Belém. Nalguns locais, houve multidões a aclamá-lo, noutros locais proibiram-no de entrar.
Quando o Papa apelou aos responsáveis políticos de todos os países para que evitassem a guerra, em particular uma nova guerra mundial, muitos foram tocados pela genuína preocupação do Pontífice, porque falava em nome de Deus e não em nome de uns em luta com outros. Numa terra ensanguentada por séculos de conflito, as palavras do Papa impressionavam porque expressavam a dor de Deus, ferido nos seus filhos sofredores.
Uma das recordações mais marcantes desses dias de peregrinação foi o encontro com Atenágoras, Patriarca ecuménico de Constantinopla, que se deslocou à Terra Santa nas mesmas datas, à frente de uma grande delegação de bispos ortodoxos, para se encontrar com Paulo VI. O abraço destes dois homens não apagou instantaneamente os quase mil anos de desavenças, durante os quais os cristãos da Europa Oriental viveram de costas voltadas para Roma, mas abriu o caminho para a reconciliação. Paulo VI emocionou-se no final do encontro do primeiro dia, quando falou daquele passo inédito. No dia seguinte, voltaram a reunir-se e a abraçar-se.
Fez agora 50 anos (nos dias 4 e 5 de Janeiro) que as feridas dolorosas do Cisma do Oriente começaram a sarar. Quantas maravilhas presenciámos, neste caminho que há-de levar à comunhão plena. E, também, quantos momentos difíceis. Recordo o Sínodo sobre a África, em 1994, em Roma. Quando chegou a intervenção da delegação ortodoxa, que tinha sido acolhida com tanta simpatia, o responsável da delegação desferiu um ataque violentíssimo contra a Igreja católica. A Aula Sinodal ficou gelada, nem se ouvia a respiração. João Paulo II levantou-se, dirigiu-se ao orador e deu-lhe um abraço muito forte. Um aplauso estrondoso quebrou o silêncio. Jesus contava com o vigor destes abraços, quando disse a Pedro que sobre ele construía a sua Igreja.
José Maria C.S. André