Ainda no rescaldo da estadia do Santo Padre em Fátima e inebriado pela graça da canonização de Jacinta e Francisco Marto e do centenário das aparições marianas na Cova da Iria, não é fácil alinhavar umas quantas considerações que, em jeito de conclusão, ajudem a retirar, de todos estes extraordinários acontecimentos, uma lição de vida cristã.
Como tantos outros peregrinos do mundo inteiro, também eu rumei em direcção a Fátima no passado dia 11, na incerteza de saber se conseguiria chegar ao meu destino ou se, pelo contrário, ficaria retido a alguns quilómetros de distância, para depois apanhar algum transporte público que me levasse até Fátima, ou seguir até lá a pé. Graças a Deus, não tive qualquer problema em chegar e estacionar numa das artérias por onde o Papa Francisco iria passar no dia seguinte, ao entrar em Fátima, vindo de Monte Real. Foi aí também que, pela primeira vez, tive a graça de o ver e de receber a sua bênção.
Mais tarde, no santuário, estando já o Papa Francisco na Capelinha, com ele rezei o terço do rosário, a oração mariana que, em seis aparições mensais consecutivas, Nossa Senhora pediu aos videntes e a todos os fiéis que rezassem diariamente, para alcançar a salvação das almas e a paz para as famílias, para a Igreja e para todo o mundo.
À medida que anoitecia, acenderam-se milhares de velas por todo o recinto, convertido num mar de gentes simples que, como na canção brasileira, mesmo não sabendo rezar, oravam com o seu olhar, feito prece de esperança e filial devoção. Não vi os teólogos que, na comunicação social, muito gostam de questionar Fátima e a sua mensagem, nem os intelectuais que, de tanto racionalizarem o fenómeno sociológico, parecem incapazes de compreender a sua natureza profundamente humana e sobrenatural. Mas vi pessoas de todo o tipo e condição, irmanadas pela mesma fé, por igual esperança, por idêntico amor.
Permitam-me uma confissão pessoal: Fátima faz-me muito mal! Sempre que lá vou – e para lá peregrino muitas vezes ao ano! – de lá regresso abatido e desanimado. Chego como um campeão que acaba de cortar a meta, para depois sair envergonhado, como um soldado que, derrotado, abandona tristemente o campo de batalha. Ante a grandeza da fé daquelas gentes, a minha fé parece ridícula. Diante da esperança que brilha no olhar daqueles peregrinos, tantas vezes provados pelo fogo das mais cruéis provações, a minha esperança afigura-se uma futilidade pueril. A fé profunda e ardente daqueles sacrificados fiéis reduz a cinzas a minha devoção, talvez mais erudita que essa sua oração, mas tão longe daquela tão autêntica simplicidade evangélica!
É então que compreendo por que a ‘Senhora mais brilhante do que o sol’ não escolheu, para seus interlocutores, os sábios nem os poderosos deste mundo, mas três crianças analfabetas, como já em Lourdes a Imaculada Conceição se revelara à pobre Bernardete. O critério de selecção da celestial mensageira não poderia ser mais evangélico, porque o Pai, Senhor do Céu e da terra, não se revelou aos sábios e entendidos, mas aos pequeninos, porque assim foi do seu agrado (cf. Mt 11, 25-26).
Mesmo que, tecnicamente, as aparições de Fátima tenham sido visões – como o Papa Francisco confirmou no avião de regresso a Roma, ao fazer seu o comentário teológico do seu predecessor, Bento XVI, quando este era ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – a verdade é que Maria apareceu em Fátima. Pouco importa, na realidade, que o tenha feito de forma sensível aos sentidos externos, ou apenas perceptível pelos sentidos internos dos videntes. Os teólogos distinguem estes dois tipos de visões mas ambos são, sem dúvida, aparições sobrenaturais: não têm a mesma ‘estrutura antropológica’, para utilizar a terminologia do teólogo Joseph Ratzinger, mas os dois são igualmente válidos e fidedignos na transmissão da mensagem transcendente, a que esta polémica algo bizantina pouco ou nada acrescenta.
Decerto, muito mais importante do que a caracterização científica do fenómeno, é a sua realização existencial na vida dos pastorinhos, nomeadamente os agora canonizados, Santa Jacinta e São Francisco Marto. Enquanto a pequena vidente foi mais sensível à necessidade de rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, pois muitas almas há que se condenam por não haver quem por elas peça e padeça, o que mais impressionou o seu irmão foi a imensidade de Deus, consideração que o retinha, por longos tempos, em amorosa meditação.
Santa Jacinta e São Francisco falam-nos, afinal, do amor a Deus que se expressa pela oração e pelo sacrifício. E, como ambos já estão no Céu, é a nós que compete, agora, amar pelos dois.
Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada in Voz da Verdade AQUI
(seleção de imagens 'Spe Deus')