Como já disse São Boaventura,
entre os vários méritos, teve o de interpretar autêntica e fielmente a figura
de São Francisco de Assis, por ele venerado e estudado com grande amor. Em
particular, na época de São Boaventura uma corrente de Frades Menores, chamados
"espirituais", afirmava que com São Francisco fora inaugurada uma fase
totalmente nova da história, aparecera o "Evangelho eterno" de que
fala o Apocalipse, que substituía o Novo Testamento. Este grupo afirmava que a
Igreja já tinha esgotado o seu papel histórico e seria substituída por uma
comunidade carismática de homens livres guiados interiormente pelo Espírito,
isto é pelos "Franciscanos espirituais". Na base das ideias de tal
grupo havia os escritos de um abade cisterciense, Joaquim de Fiore, falecido em
1202. Nas suas obras, ele afirmava um ritmo trinitário da história. Considerava
o Antigo Testamento como era do Pai, seguido pelo tempo do Filho, o tempo da
Igreja. Haveria que esperar ainda a terceira era, a do Espírito Santo. Assim,
toda a história devia ser interpretada como uma história de progresso: da
severidade do Antigo Testamento à relativa liberdade do tempo do Filho, na
Igreja, até à plena liberdade dos Filhos de Deus, no período do Espírito Santo,
que enfim seria inclusive o período da paz entre os homens, da reconciliação
dos povos e das religiões. Joaquim de Fiore suscitou a esperança de que o
início do novo tempo viria de um novo monaquismo. Assim, é compreensível que um
grupo de Franciscanos julgasse reconhecer em São Francisco de Assis o iniciador
do novo tempo e, na sua Ordem, a comunidade da nova época a comunidade do tempo
do Espírito Santo, que deixava atrás de si a Igreja hierárquica, para começar a
nova Igreja do Espírito, desligada das velhas estruturas.
Portanto, havia o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensagem de São
Francisco, da sua fidelidade humilde ao Evangelho e à Igreja, e tal equívoco
incluía uma visão errónea do Cristianismo no seu conjunto.
São Boaventura, que em 1257 se tornou Ministro-Geral da Ordem Franciscana,
encontrou-se diante de uma grave tensão no interior da sua própria Ordem precisamente
por causa de quem defendia a mencionada corrente dos "Franciscanos
espirituais", que se inspirava em Joaquim de Fiore. Exatamente para
responder a este grupo e dar nova unidade à Ordem, São Boaventura estudou com
atenção os escritos autênticos de Joaquim de Fiore e os que lhe eram atribuídos
e, tendo em consideração a necessidade de apresentar corretamente a figura e a
mensagem do seu amado São Francisco, quis expor uma justa visão da teologia da
história. São Boaventura enfrentou o problema na sua última obra, uma
coletânea de conferências aos monges do estúdio parisiense, que ficou
incompleta e chegou até nós através das transcrições dos auditores,
intitulada Hexaëmeron,
isto é uma explicação alegórica dos seis dias da criação. Os Padres da Igreja
consideravam os seis ou sete dias da narração sobre a criação como profecia da
história do mundo, da humanidade. Os sete dias representavam para eles sete
períodos da história, mais tarde interpretados também como sete milénios. Com
Cristo teríamos entrado no último, ou seja no sexto período da história, ao
qual depois se seguiria o grande sábado de Deus. São Boaventura supõe esta
interpretação histórica do relatório dos dias da criação, mas de um modo muito
livre e inovativo. Para ele, dois fenómenos do seu tempo tornam necessária uma
nova interpretação do curso da história.
O
primeiro: a figura de São Francisco, homem totalmente unido a Cristo até à
comunhão dos estigmas, quase um alter Christus, e com São Francisco a nova
comunidade por ele criada, diferente do monaquismo até agora conhecido. Este
fenómeno exigia uma nova interpretação, como novidade de Deus que surgiu nesse
momento.
O
segundo: a posição de Joaquim de Fiore, que anunciava um novo monaquismo e um
período totalmente novo da história, indo além da revelação do Novo Testamento
exigia uma resposta.
Como
Ministro-Geral da Ordem dos Franciscanos, São Boaventura viu logo que com a
conceção espiritualista inspirada por Joaquim de Fiore, a Ordem não era
governável, mas caminhava logicamente rumo à anarquia. Para ele, havia duas
consequências:
A
primeira: a necessária prática de estruturas e de inserção na realidade da
Igreja hierárquica, da Igreja real, tinha necessidade de um fundamento
teológico, também porque os outros, aqueles que seguiam a conceção
espiritualista, mostravam um aparente fundamento teológico.
A
segunda: mesmo tendo em consideração o realismo necessário, não se podia perder
a novidade da figura de São Francisco.
Como
respondeu São Boaventura à exigência prática e teórica? Da sua resposta posso
dar aqui só um resumo muito esquemático e incompleto, em alguns pontos:
1. São
Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história. Deus é um para toda
a história e não se divide em três divindades. Portanto, a história é uma só,
embora seja um caminho e segundo São Boaventura um caminho de progresso.
2.
Jesus Cristo é a última palavra de Deus nele Deus disse tudo, doando-se e
proclamando-se a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus não pode dizer, nem
doar. O Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho. O próprio Cristo diz do
Espírito Santo: "...ensinar-vos-á tudo o que vos tenho dito" (Jo 14, 26),
"receberá do que é meu para vo-lo anunciar" (Jo 16, 15).
Portanto, não existe outro Evangelho mais excelso, não há outra Igreja a
esperar. Por isso, até a Ordem de São Francisco deve inserir-se nesta Igreja,
na sua fé, no seu ordenamento hierárquico.
3. Isto não significa que a Igreja é
imóvel, fixa no passado, e que nela não possa haver novidade. "Opera Christi non deficiunt,
sed proficiunt",
as obras de Cristo não regridem, não vêm a faltar, mas progridem, diz o Santo
na Carta De
tribus quaestionibus.
Assim São Boaventura formula explicitamente a ideia de progresso, e esta é uma
novidade em relação aos Padres da Igreja e a uma grande parte dos seus
contemporâneos. Para
São Boaventura, Cristo não é mais, como era para os Padres da Igreja, o fim,
mas o centro da história; com Cristo, a história não termina, mas começa um
novo período.Outra consequência é a seguinte: até àquele
momento predominava a ideia de que os Padres da Igreja fossem o ápice absoluto
da teologia, e que todas as gerações seguintes só pudessem ser suas
discípulas. Até
São Boaventura reconhece os Padres como mestres para sempre, mas o fenómeno de
São Francisco dá-lhe a certeza de que a riqueza da palavra de Cristo é
inesgotável e que até nas novas gerações podem despontar novas luzes. A unicidade
de Cristo garante também novidade e renovação em todos os períodos da história.
Sem
dúvida, a Ordem franciscana assim sublinha pertence à Igreja de Jesus Cristo, à
Igreja Apostólica, e não pode construir-se num espiritualismo utópico. Mas ao
mesmo tempo é válida a novidade de tal Ordem em relação ao monaquismo clássico,
e São Boaventura como eu disse na catequese precedente defendeu esta novidade
contra os ataques do Clero secular de Paris: os Franciscanos não têm um
mosteiro fixo e podem estar presentes em toda a parte para anunciar o
Evangelho. Precisamente a ruptura com a estabilidade, característica do
monaquismo, a favor de uma nova flexibilidade, restituiu à Igreja o dinamismo
missionário.
Nesta
altura, talvez seja útil dizer que até hoje existem visões segundo as quais
toda a história da Igreja no segundo milénio teria sido um declínio permanente;
alguns vêem o declínio já imediatamente após o Novo Testamento. Na realidade, "Opera Christi non deficiunt,
sed proficiunt",
as obras de Cristo não regridem mas progridem. O que seria a Igreja, sem a nova
espiritualidade dos Cistercienses, dos Franciscanos e Dominicanos, da
espiritualidade de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz, e assim por
diante? Até hoje é válida esta afirmação: "Opera Christi non deficiunt,
sed proficiunt", progridem. São Boaventura ensina-nos o conjunto
do discernimento necessário, mesmo severo, do realismo sóbrio e da abertura a
novos carismas doados por Cristo no Espírito Santo, à sua Igreja. E
enquanto se repete esta ideia do declínio, há também outra ideia, o
"utopismo espiritualista" que se repete. Com efeito, sabemos que
depois do Concílio Vaticano II alguns estavam convictos de que tudo era novo,
como se houvesse outra Igreja, que a Igreja pré-conciliar tivesse terminado e
teríamos tido outra, totalmente "outra". Um utopismo anárquico! E graças a Deus os timoneiros sábios
da barca de Pedro, Papa Paulo VI e Papa João Paulo II, por um lado defenderam a
novidade do Concílio e por outro, ao mesmo tempo, defenderam a unicidade e a
continuidade da Igreja, que é sempre Igreja de pecadores e sempre lugar de
Graça.
4.
Neste sentido São Boaventura, como Ministro-Geral dos Franciscanos, assumiu uma
linha de governo em que era bem claro que a nova Ordem não podia, como comunidade,
viver à mesma "altura escatológica" de São Francisco, em quem ele vê
antecipado o mundo futuro, mas guiado ao mesmo tempo por um realismo sadio e
pela coragem espiritual tinha que se aproximar o mais possível da máxima
realização do Sermão da Montanha, que para São Francisco foi a regra, mesmo
tendo em consideração os limites do homem, marcado pelo pecado original.
Vemos
assim que para São Boaventura governar não era simplesmente agir, mas era
sobretudo pensar e rezar. Na
base do seu governo encontramos sempre a oração e o pensamento; todas as suas
decisões derivam da reflexão, do pensamento iluminado pela oração. O
seu contacto íntimo com Cristo acompanhou sempre o seu trabalho de
Ministro-Geral e por isso ele compôs uma série de escritos teológico-místicos,
que expressam a alma do seu governo e manifestam a intenção de orientar
interiormente a Ordem, isto é de governar não só mediante mandatos e
estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando para Cristo.
Destes
seus escritos, que são a alma do seu governo e mostram o caminho a percorrer,
tanto ao indivíduo como à comunidade,gostaria
de mencionar um só, sua obra-prima, o Itinerarium mentis in Deum, que é um "manual" de
contemplação mística. Este livro foi concebido num lugar de
profunda espiritualidade: o monte La Verna, onde São Francisco tinha recebido
os estigmas. Na introdução, o autor explica as circunstâncias que deram origem
a este seu escrito: "Enquanto eu meditava sobre as possibilidades da alma
se elevar a Deus, apresentou-se-me entre outros aquele acontecimento admirável
ocorrido naquele lugar com o bem-aventurado Francisco, ou seja a visão do
Serafim alado em forma de Crucifixo. E meditando sobre isto, dei-me conta
imediatamente de que tal visão me oferecia o êxtase contemplativo do próprio
pai Francisco e ao mesmo tempo o caminho que a ele conduz" (Itinerário da mente em Deus,
Prólogo, 2 em Obras
de São Boaventura. Opúsculos
Teológicos/1, Roma 1993, pág. 499).
Assim,
as seis asas do Serafim tornam-se o símbolo de seis etapas que conduzem
progressivamente o homem ao conhecimento de Deus através da observação do mundo
e das criaturas e através da exploração da própria alma com as suas faculdades,
até à união total com a Trindade por meio de Cristo, à imitação de São
Francisco de Assis. As últimas palavras do Itinerarium de São Boaventura, que
respondem à pergunta sobre o modo como se pode alcançar esta comunhão mística
com Deus, deviam fazer alcançar o fundo do coração: "Se agora desejas
saber como acontece isto (a comunhão mística com Deus), interroga a graça, não
a doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da
letra; o esposo, não o mestre; Deus, não o homem; as trevas, não a clareza; não
a luz, mas o fogo que tudo inflama e transporta em Deus, com as fortes unções e
os afetos ardentíssimos... Portanto, entremos nas trevas, silenciemos os
anseios, as paixões e os fantasmas; passemos com Cristo Crucificado deste mundo para
o Pai para, depois de o ter visto, dizermos com Filipe: basta-me isto" (Ibid.,
VII, 6).
Queridos
amigos, aceitemos o convite que nos é dirigido por São Boaventura, o Doutor
Seráfico, e coloquemo-nos na escola do Mestre divino: ouçamos a sua Palavra de
vida e de verdade, que ressoa no íntimo da nossa alma. Purifiquemos os nossos
pensamentos e as nossas acções, a fim de que Ele possa habitar em nós, e nós
possamos ouvir a sua Voz divina, que nos atrai para a verdadeira felicidade.
(©
L'Osservatore Romano - 13 de Março de 2010)