Propostas de Bento XVI em 2010 para os católicos italianos, válidas também para os de outros países
Uma fé radicada na união com Cristo, que se traduza eficazmente na vida quotidiana, pessoal e social, e que transmita o carácter positivo da fé. É esse o fio condutor do discurso "pragmático" que Bento XVI dirigiu no dia 19 de Outubro de 2006 ao IV Congresso Nacional da Igreja em Itália, celebrado em Verona. Ainda que a imprensa tivesse feito eco sobretudo das repercussões políticas - num país onde os católicos estão presentes nas duas coligações maioritárias e antagonistas que definem a vida política -, o alcance do discurso do Papa foi muito mais amplo. E as ideias que contém podem aplicar-se em boa medida também a outros países.
O clima cultural
Como noutras ocasiões, o Papa apresentou no início uma rápida análise da situação cultural da nossa época. O panorama italiano caracteriza-se, como no resto do Ocidente, por uma forte incidência de uma onda cultural laicista e iluminista, que considera racionalmente válido só o que se pode experimentar e calcular. No plano do comportamento, define-se por ter erigido a liberdade individual como valor supremo. A ética fica encerrada nos confins do relativismo e do utilitarismo, pois se exclui todo o princípio moral que seja válido e vinculável. Nesse esquema, Deus não tem lugar nem na cultura nem na vida pública.
Na aplicação prática desta proposta, contudo, acaba-se por reduzir o homem a um simples produto da natureza. Por fim, elimina-se de facto o que era o fundamento desta visão do mundo: a reivindicação da centralidade do homem e da sua liberdade. "Não é difícil ver que este tipo de cultura representa um corte radical e profundo não só no cristianismo mas também, mais em geral, com as tradições religiosas e morais da humanidade". Uma consequência é a sua incapacidade para estabelecer um verdadeiro diálogo com outras culturas, nas quais a dimensão religiosa está fortemente presente. Também não se sabe responder às perguntas essenciais sobre o sentido da vida.
Desejo de esperança
Esta corrente cultural mostra, portanto, uma profunda carência e também um grande desejo de esperança, que inutilmente tenta dissimular. O Papa observou que esta crise - o perigo que supõe romper com as raízes cristãs da nossa civilização - foi advertida por "muitos e importantes homens de cultura, inclusivamente entre aqueles que não partilham ou praticam a nossa fé". E aqui vem a propósito recordar os debates públicos que o então cardeal Ratzinger manteve com alguns desses intelectuais.
A conclusão a que chega o Papa depois desta breve análise não é pessimista, pois sustenta que se trata de uma situação propícia para que Igreja renove o seu dinamismo. "Toca-nos a nós - não com as nossas pobres forças, mas com a força que vem do Espírito Santo - dar respostas positivas e convincentes às expectativas e interrogações da nossa gente". É um serviço que a Igreja pode prestar não só à Itália, mas também ao mundo inteiro.
Bento XVI não ofereceu receitas nem tácticas sobre como articular o testemunho cristão nos diversos âmbitos da vida humana. Mas manifestou que é preciso que se torne visível o grande "sim" que supõe a fé. "o grande sim" que Deus, em Jesus Cristo, comunicou ao homem e à sua vida, ao amor humano, à nossa liberdade e à nossa inteligência". Deve manifestar-se que "a fé em Deus de rosto humano traz a alegria ao mundo. O cristianismo, com efeito, está aberto a todo o que de justo, verdadeiro e puro há nas culturas e nas civilizações, a tudo o que atrai, consola e fortalece a nossa existência".
O exemplo dos primeiros cristãos
Essa atitude não equivale a um simples adaptar-se às culturas, já que sempre fará falta um trabalho de purificação, de sanação e amadurecimento. No plano intelectual é necessário, concretamente, "ampliar os espaços da nossa racionalidade, tornar a abri-la às grandes questões da verdade e do bem". E como o homem não é só razão e inteligência, é preciso também tornar patente o sentido do amor e da dor. Recordando João Paulo II, Bento XVI disse que face ao poder do mal e do pecado, Deus não opõe um poder maior mas sim que "prefere pôr o limite da sua paciência e da sua misericórdia, um limite que é, em concreto, o sofrimento do Filho de Deus".
Pôr em prática a fé nem sempre é fácil, e inclusivamente pode resultar discutível. Mas esses obstáculos não são razão para o desânimo: "ao contrário, devemos sempre estar preparados para dar resposta (apologia) a quem pergunte pela razão (logos) da nossa esperança (...). E devemos fazê-lo em todas as frentes, no campo do pensamento e da acção, dos comportamentos pessoais e do testemunho público". Para ilustrá-lo, o Papa referiu-se à vida dos primeiros cristãos. A primeira grande expansão missionária do cristianismo no mundo greco-romano foi possível graças "à forte unidade que se realizou, na Igreja dos primeiros séculos, entre uma fé amiga da inteligência e uma praxis de vida caracterizada pelo amor recíproco e pela atenção solícita pelos pobres e os que sofrem".
Educar a inteligência e a liberdade
A unidade entre a verdade e a caridade continua a ser, também na nossa época, o caminho para a evangelização. Neste contexto, ressalta a importância da educação da pessoa, tanto da inteligência como da liberdade e da capacidade de amar, sem esquecer o recurso à graça de Deus. Só assim se poderá fazer face ao risco de desequilíbrio entre o rápido crescimento do nosso poder técnico e o crescimento, muito mais árduo, dos nossos recursos morais.
Uma educação verdadeira tem necessidade de "despertar a valentia pelas decisões definitivas, que hoje se consideram um vínculo que mortifica a nossa liberdade, mas que - na realidade - são indispensáveis para crescer e alcançar algo grande na vida, especialmente para fazer amadurecer o amor em toda a sua beleza: quer dizer, para dar consistência e significado à mesma liberdade.
Sob esse ponto de vista, acrescentou o Papa, é que se entendem os "nãos" da doutrina de Cristo face a "formas débeis e desviadas do amor ou falsificações da liberdade", ou intentos de reduzir a razão só ao que é calculável e manipulável. "Na realidade, estes ‘nãos' são mais um ‘sim' ao amor autêntico, à realidade do homem tal como foi criado por Deus".
Na vida pública
A última parte do discurso foi dedicada à caridade e à responsabilidade cívica e política dos católicos. Para os cristãos, a caridade não é simples beneficência: "a caridade da Igreja torna visível o amos de Deus no mundo e torna assim convincente a nossa fé em Deus encarnado, crucificado e ressuscitado". Sobre as formas organizadas de caridade, o Papa sublinhou a importância de que mantenham o seu perfil específico, livre de sugestões ideológicas e de simpatias partidárias.
A passagem mais destacada pela imprensa foi a que dedicou à acção civil e política dos católicos, tema recorrente na actualidade política desde que há mais de uma década se abandonou em Itália o conceito de unidade política dos católicos num mesmo partido (a democracia cristã). O Papa sublinhou que a Igreja "não é e não quer ser um agente político. Ao mesmo tempo, tem um profundo interesse pelo bem da comunidade política, cuja alma é a justiça". A razão é que "Cristo veio salvar o homem real e concreto, que vive na história e na comunidade, e portanto o cristianismo e a Igreja, desde o começo, tem tido uma dimensão e um valor também públicos".
Com a distinção e autonomia recíproca entre Estado e Igreja, entre o que é de César e o que é de Deus, Jesus Cristo trouxe uma novidade substancial às relações entre religião e política, que abriu o caminho para um mundo mais humano e mais livre. A liberdade religiosa, "que advertimos como um valor universal, particularmente necessário no mundo de hoje", tem a sua raiz histórica nessa distinção.
Questões não negociáveis
A contribuição específica da Igreja neste campo expressa-se num nível duplo: por um lado, a doutrina social, argumentada a partir do que é conforme à natureza de todo o ser humano, que contribui a que se possa identificar eficazmente o que é justo, de modo que possa ser depois realizado; e por outro, a atenção pela formação das consciências, pois são necessárias "energias morais e espirituais que permitam antepor as exigências da justiça aos interesses pessoais, ou de uma categoria social ou inclusivamente do Estado".
Assim pois, "a tarefa imediata de actuar no âmbito político, para construir uma ordem social justa na sociedade, não é da Igreja como tal, mas sim dos fiéis leigos, que actuam como cidadãos com a sua própria responsabilidade". O Papa assinalou alguns campos que requerem uma especial atenção e trabalho: a guerra, o terrorismo, a luta contra a fome, a sede e algumas epidemias. Acrescentou que é preciso fazer frente, com a mesma determinação e clareza de intenções, ao "perigo de decisões políticas e legislativas que contradizem valores fundamentais e princípios antropológicos e éticos radicados na natureza do ser humano". Mencionou concretamente as que se referem à "tutela da vida em todas as suas fases, desde a concepção até à morte natural, e a promoção da família fundada sobre o matrimónio, evitando introduzir no ordenamento público outras formas de união que contribuiriam a desestabilizá-la, ofuscando o seu carácter peculiar e o seu papel social insubstituível".
Guia de navegação
A única referência por assim dizer "interna" à vida da Igreja foi feita no fim do discurso. Além de insistir em que para um cristão o essencial é a sua união com Cristo, disse que é preciso "resistir à ‘secularização interna' que ameaça a Igreja do nosso tempo, como consequência dos processos de secularização que têm marcado profundamente a civilização europeia".
Se se consideram em separado cada um dos temas abordados no discurso, a intervenção do Papa não trouxe "novidades", pois são conteúdos de que já tem falado noutras ocasiões, e que inclusivamente desenvolveu durante anos. Talvez a novidade esteja na abundância e na conexão das questões entre si: um elenco que converte este discurso numa espécie de guia de navegação que guiará a actividade da Igreja na Itália durante os próximos anos. E que oferece, sem dúvida, orientações significativas para outros países.
Aceprensa