A lei não pode ser um instrumento do poder das minorias contra a maioria, mas um garante da justiça e da solidariedade social
Sempre que surgem questões ditas fracturantes, há quem defenda a necessidade do reconhecimento jurídico dessas novas realidades.
É verdade que o ordenamento jurídico deve conhecer bem a realidade social que pretende regular. Também é certo que o direito positivo, numa sociedade laica, não tem por que obedecer a exigências de ordem sobrenatural, mesmo quando a sociedade se reconhece maioritariamente cristã. Mas destes princípios não decorre, ao contrário do que alguns afirmam, a absoluta arbitrariedade da ordem jurídica, nem a sua subserviência em relação ao poder emergente.
O direito não cria a realidade, mas ordena-a para o bem comum, segundo os princípios da justiça social. Não é o ordenamento jurídico que cria o ser humano, tão-só verifica a sua existência e reconhece os direitos e deveres inerentes à sua condição. Seria portanto aberrante atribuir este estatuto jurídico, por absurda hipótese, a algum ser não humano, ou negá-lo, como aconteceu com os escravos, a alguém dotado dessa natureza.
A este propósito, recorde-se que a lei é, sobretudo, uma ordenação da razão e não apenas, nem principalmente, uma expressão da vontade popular. O ser humano e a família não são aquilo que o povo quiser: são realidades naturais que o direito não pode deixar de reconhecer, pelo menos no que se refere à sua essência. Não cabe ao legislador, mesmo que mandatado pelo voto maioritário, estabelecer quando começa, ou termina, uma vida humana: é ao cientista que compete uma tal verificação. Depois de atestada essa realidade, o jurista fará decorrer as consequências previstas na lei, mas sem entrar na apreciação do acto em si, cuja avaliação não lhe compete. O direito não sabe, nem tem por que saber, quando surge ou se extingue a vida humana, mas não pode deixar de reconhecer o que é óbvio, não só em relação à vida como também ao que respeita à geração e à família, e daí extrair as respectivas consequências jurídicas. É o médico que está em condições de diagnosticar a existência de uma nova vida, ou de atestar um óbito, mas é o jurista que deverá depois desencadear os efeitos jurídicos decorrentes desses factos, na medida em que sejam juridicamente relevantes.
Se a noção clássica de lei sublinha o seu carácter racional e a sua intrínseca relação com o bem comum, a moderna definição de lei prende-se sobretudo com instâncias volitivas: a norma seria, sobretudo, a expressão jurídica da vontade popular ou, como diria Rousseau, da vontade geral. Ora, como a história demonstra com eloquência, nem sempre a vontade das maiorias é justa, porque também houve tiranos que, como Hitler, chegaram ao poder por via democrática. Não basta que a norma cumpra alguns requisitos formais, como seja o facto de emanar do órgão capaz de a produzir com eficácia; tem que ser também legítima, ou seja, justa, porque adequada ao bem comum. Um direito que é apenas a voz do poder preponderante, seja este ditatorial ou democrático, dificilmente poderá ser instrumento eficaz na construção de uma sociedade justa. Até porque os não-nascidos, as crianças, sobretudo as que são órfãs, os pobres e os doentes nunca serão, em princípio, um poder capaz de expressar de forma eficaz as suas legítimas pretensões, que o direito, contudo, não pode deixar de tutelar.
Mais do que qualquer outro princípio, interessa ao direito a defesa dos mais necessitados. O poder legislativo não pode ser um instrumento das maiorias contra as minorias, nem destas contra a maioria, mas um meio pelo qual, no mais escrupuloso respeito pela dignidade e liberdade dos cidadãos, se defenda, na verdade, a justiça e o bem comum.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada na Voz da Verdade, de 16-2-2014