Quem não acredita no inferno não acredita no homem. Não acredita no homem como ser consciente e livre, pessoal, responsável. Capaz de escolher o seu destino. Não acredita em nada, afinal: assiste à existência, perplexo ou distraído. Não lhe vê sentido nenhum. Vive e movimenta-se como um galo sem cabeça, até cair dessangrado. Quem não acredita no inferno não acredita na dignidade humana, tal e tanta, que Deus a respeita escrupulosamente, até ao ponto de deixar perder-se um filho, depois de ter dado a vida do seu Unigénito por ele. Nenhuma pessoa nem sociedade manifesta maior respeito pela nossa liberdade, um respeito que chega a ser assustador, pela tremenda responsabilidade que nos confere, e à qual não podemos renunciar. E, se só de pensar na eterna separação de Deus nos afligimos, que será presenciar o inferno, como Nossa Senhora o mostrou aos três pastorinhos?
E por que o fez, senão para nos dar a todos, através deles, o sentido das realidades que estão em jogo na vida? «Viver é um negócio muito perigoso», diz sabiamente um personagem de Guimarães Rosa. Não faltaram hereges que, presumindo-se mais bondosos do que Deus, o contestaram a existência do inferno, ou a sua eternidade. De facto, «é horrendo cair nas mãos do Deus vivo» (Hebr 10, 31), exclamava o Apóstolo, assim como é maravilhoso «viver com Ele no amor» (Sab 3, 9). Embora devamos animar-nos com a esperança do Céu, é muito conveniente não esquecermos a horrível alternativa da perdição. Caso contrário, não entendemos a Encarnação, nem a Cruz, nem a instituição da Igreja, nem o valor dos Sacramentos, nem a necessidade da vigilância e da oração constantes, nem a luta ascética, nem a urgência do apostolado...
«As afirmações da Sagrada Escritura e os ensinamentos da Igreja a respeito do inferno são um apelo ao sentido de responsabilidade com que o homem deve usar da sua liberdade, tendo em vista o destino eterno. Constituem, ao mesmo tempo, um apelo urgente à conversão: 'Entrai pela porta estreita...'» (Catecismo da Igreja Católica, 1036).
Quando perguntavam aos militares destinados ao Iraque se não sentiam medo, a resposta sensata era a que davam: «Não ter medo seria irracional!» E, se é irracional não temer a morte violenta, quanto mais sensato será temer a morte eterna! «Não temais os que podem matar o corpo... Temei antes aquele que pode lançar a alma e o corpo na Geena!» (Mt 10, 28)
Mas não diz o Apóstolo que quem teme não é perfeito na caridade? (I Jo 4, 18) Temer o inferno não é temer Deus; é justamente o contrário: temer a separação d’Ele. Quanto a Ele não cabe o temor, mas só o amor. Nem sequer havemos de recear a nossa fragilidade, pois Ele bem sabe «de que barro somos feitos» (S 102, 14). O inferno não se destina aos pecadores, que todos somos; destina-se aos soberbos. Assim como o Céu não se destina aos «perfeitos», que nenhum de nós é; destina-se aos humildes, aos que amam a Deus e se arrependem... até do bem que fazem, por ser tão pouco!
A soberba é o caminho do inferno. Aquele que não se habituou a pedir desculpa, tanto a Deus como ao próximo; aquele que «tem sempre razão», que só erra «por culpa dos outros», que não encontra nada de que se arrepender, e foi sempre «perfeito» no seu comportamento, modelo e padrão da restante gente... esse está a caminho de se perder eternamente.
Por isso havemos de animar todos os cristãos ao Sacramento da Penitência. Quem frequenta a Confissão, está preparado para entrar na glória divina, ainda que a morte o colha de surpresa, porque nesse instante decisivo seguirá facilmente o exemplo do bom ladrão, e Deus o receberá com alegria. Rezemos, porém, pelos que perderam o costume de se confessarem: nem imaginam em que perigo estão! «Rezai, rezai muito e fazei sacrifícios pelos pecadores», pedia com tristeza, em Agosto de 1917, Nossa Senhora aos três meninos de Fátima, «que vão muitas almas para o inferno por não haver quem se sacrifique por elas!»
Muitos problemas pastorais preocupam a Igreja, mas este é o decisivo. E o espírito de penitência, a solução.
Hugo de Azevedo
(Fonte: Edições LICEL AQUI)