Eminência [...]: devo dizer-lhe, honestamente, que os últimos dias foram como uma prova de fé para mim e para alguns dos meus colegas [refere-se à campanha contra a Igreja por causa dos padres pedófilos nos Estados Unidos]. Como enfrentar a tentação da desesperança que às vezes experimentamos [...]?
Penso que temos de nos lembrar de Nosso Senhor, que nos disse: "No campo da Igreja não haverá só trigo, mas também palha; dos mares do mundo, tirareis não somente peixes, mas também coisas inaceitáveis". Portanto, o Senhor anuncia-nos uma Igreja em que existirão escândalos e pecadores. Devemos lembrar-nos de que São Pedro, o primeiro dos Apóstolos, foi um grande pecador, e apesar disso o Senhor quis que esse Pedro pecador fosse a rocha da Igreja. Com isso, indicou-nos que não esperássemos que todos os Papas fossem grandes santos: temos de aceitar que alguns deles sejam pecadores.
[Cristo] anuncia-nos que no campo da Igreja haverá muita palha. A situação actual não nos surpreende se considerarmos a História da Igreja. Houve épocas que foram pelo menos tão complicadas como a nossa, com escândalos, coisas ruins, etc. Basta pensar no século IX, no X, no Renascimento... Contemplando, pois, as palavras do Senhor aplicadas à História da Igreja, poderemos relativizar os escândalos de hoje.
Sofremos. Temos que sofrer porque os escândalos fazem sofrer muita gente, e agora penso nas vítimas. Certamente, temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que essas coisas aconteçam no futuro, mas, por outro lado, sabemos que o Senhor - e esta é a essência da Igreja - se sentava à mesa com pecadores. Esta é a própria definição da Igreja: que o Senhor se senta à mesa com pecadores. Portanto, não podemos surpreender-nos [de que haja pecados]. Não podemos cair na desesperança.
Pelo contrário, o Senhor disse-nos: "Não estou aqui só para os justos, mas sim para os pecadores". Temos que estar certos de que o Senhor, verdadeiramente, e também hoje em dia, procura os pecadores para os salvar.
Durante os dois últimos anos, muitos diagnosticaram uma crise de abusos sexuais que estariam infestando a Igreja nos Estados Unidos. [...] O senhor, eu sei, acompanhou bastante essa crise, tratando de fechar as feridas. A minha pergunta é: quais pensa que sejam as raízes dessa crise?
Distinguiria talvez dois elementos: um geral e outro específico. O elemento geral é, como já disse, a fraqueza dos seres humanos, incluídos os sacerdotes. As tentações existem também para os padres, e isso sempre será assim. Temos de aceitá-lo e entender que [...] estas coisas podem acontecer.
O segundo ponto é mais específico. Por que é mais comum nestes tempos do que no passado? Penso que um ponto essencial é a debilidade da fé. Somente se eu me encontrar a sós com o Senhor, se o Senhor estiver presente para mim - não a ideia, mas a Pessoa com quem vivo uma profunda amizade -, se eu o conhecer pessoalmente e estiver todos os dias em contacto com o seu amor, somente então é que a fé se converterá numa realidade para mim. Se for assim, ela passará a ser o chão da minha vida, a mais firme realidade, e não uma simples possibilidade. Se for assim, se eu estiver realmente convicto e em contacto com o amor do Senhor, então Ele me ajudará a vencer as tentações, por mais que pareçam impossíveis de vencer. Se não atualizamos a nossa fé todos os dias, se ela se enfraquece e se converte em algo que não é fundamental na vida, então começam todos esses problemas.
É por todas estas razões que a debilidade da fé e a pouca presença da fé na Igreja são o ponto essencial [das crises]. Parece-me que é um problema que vimos arrastando há quarenta ou cinquenta anos: a noção de que temos de ter ideias comuns com todo o mundo e de que a fé é um assunto muito pessoal, juntamente com a falta de consciência de que é um dom de Deus. A primeira coisa a fazer, neste caso, é voltar a aprender, é reconvertermo-nos a uma fé profunda e educarmo-nos na fé.
Penso também que, nos últimos quarenta ou cinquenta anos, o ensino moral na Igreja não esteve muito claro. Tivemos tantos mestres que ensinavam falsidades e diziam:
"Não, isso não é pecado. Isso é comum e, como todos o fazem, está permitido"! Por causa dessas ideias, não tivemos uns ensinamentos morais claros. Acredito que há duas coisas essenciais nesta matéria: a conversão a uma fé profunda, a vida sacramental e de oração, por um lado; e, por outro, um ensino moral e a convicção de que a Igreja tem o Espírito Santo do seu lado.
O que diria aos fiéis nos Estados Unidos que se encontram tão abatidos nestes momentos que não sabem para quem olhar?
Bem, em primeiro lugar o que têm de fazer é olhar para o Senhor. Ele está sempre presente e sempre perto de nós. E olhem também para os santos de todos os tempos. Os humildes, os fiéis estão aí, talvez de maneira não tão evidente porque não aparecem na televisão; mas estão presentes, e é nisso que a Igreja confia: confia em que todos os fiéis encontrarão esse tipo de pessoas. Assim verão que, com todos os problemas de hoje, a Igreja não desapareceu, continua adiante, especialmente graças a pessoas que não são muito visíveis. Penso, por conseguinte, que o essencial é encontrar o Senhor, ver os santos de todos os tempos e encontrar também os que não estão canonizados, as pessoas singelas que estão no coração da Igreja.
(Cardeal Joseph Ratzinger in ‘La crisis de la Iglesia: una fe débil’)