Para quem não tem alergia ao pó
dos livros, folhear exemplares com mais de um século é uma provocação
irresistível e o dia de hoje convida a uma dessas leituras. Já explico qual.
Celebra-se hoje (11 de Dezembro)
a memória do Papa S. Dâmaso, nascido em Roma de uma família originária da
Galiza. Os pais chamavam-se António e Laurência. Este Papa santo nasceu e
morreu no século IV, numa altura de profundas transformações. A Igreja passou
de perseguida pelo Imperador a defendida por este, ao mesmo tempo que proliferaram
heresias violentas em várias partes do Império. O clima de paz na cidade de
Roma favoreceu a construção de templos cristãos, mas foi também a ocasião para
alguns cristãos se aburguesarem. Simultaneamente, o mundo civilizado, que até
então falava grego, passou a falar latim. Em pouco tempo, o mundo ficou completamente
diferente.
O fim das perseguições imperiais
permitiu que as intervenções enérgicas do Papa Dâmaso chegassem aos confins da
terra conhecida, através das suas numerosas cartas. A mudança da língua vulgar
do grego para o latim levou-o a fazer uma reforma litúrgica bastante radical,
traduzindo umas orações do grego para o latim e escrevendo outras novas, que
perduraram até aos nossos dias. Foi ele quem encarregou S. Jerónimo de fazer
uma boa tradução da Bíblia para latim, aquela que ficou conhecida como a «Vulgata»
e ainda hoje é uma referência pela sua qualidade.
A reacção de Dâmaso ao aburguesamento
dos cristãos de Roma consistiu em lembrar-lhes a vida santa dos cristãos mais antigos,
em particular dos que derramaram o sangue por fidelidade a Cristo. Dâmaso dedicou
um grande esforço a cuidar os sepulcros dos mártires, conservou as actas que relatam
o seu martírio e redigiu uma vasta colecção de «epigrammata», pequenos poemas
em memória de muitos deles.
Por tudo isto, a celebração de S.
Dâmaso é um bom dia para recordar o «Catacombs of Rome and their Testimony
Relative to Primitive Christianity», do historiador W. H. Withrow, editado em
Londres há 131 anos. O livro descreve a iconografia dos primitivos cristãos e o
respeito que eles tinham pelo corpo humano. Por isso, em vez de o queimarem
depois da morte, sepultavam-no como objecto precioso, símbolo da ressurreição
futura.
Mas a razão que me trouxe este
livro à memória é o paralelismo entre a agressividade do ambiente daqueles
tempos e a do mundo ocidental nos nossos dias.
Naquele tempo, a crucifixão era
considerada a morte mais ignominiosa, a punição mais horrível e brutal. Para os
pagãos, estava tudo dito acerca da indignidade de Jesus Cristo: foi crucificado.
Como é possível Deus descer tão baixo? E que humilhação inconcebível, seguir um
salvador que foi morto na cruz!
Escreve Withrow: «Uma mostra desta
sensibilidade é uma caricatura blasfema da crucifixão encontrada nas paredes do
palácio dos césares, datada aproximadamente do tempo do Imperador Septímio
Severo. Representa uma personagem com cabeça de burro atada a uma cruz e outra
figura a beijar-lhe a mão em gesto de adoração. Por baixo, um “graffito”
grosseiro diz: Ἀλεξόμενος σέβετε [sic] Θεὸν —“Alexómenos adora o seu Deus”. Provavelmente,
este “graffito” foi desenhado por algum legionário romano para troçar de um
soldado cristão da casa de César».
Withrow localiza esta placa no Museu
do Collegio Romano dos jesuítas, chamado Museu Kircheriano, mas muitas peças
deste museu foram dispersas por outros museus de Roma numa época de perseguição
aos jesuítas e parece que esta placa foi uma das que foi levada.
Withrow cita também Tertuliano,
um escritor do século II-III, que relata que era comum os pagãos pensarem que o
Deus dos cristãos tinha cabeça de burro. O mesmo Tertuliano fala de outra
caricatura pagã com orelhas de burro, casco num dos pés, carregando um livro e
usando uma toga, na qual estava afixada a inscrição «O Deus dos cristãos,
nascido de um burro». Numa laje descoberta em Vigna Nussiner, há uma
representação de um burro com a inscrição satírica «Hic est Deus Hadriani» —“Eis
o deus de Adriano”.
Pensando na abundância de
caricaturas desrespeitosas para com Deus, pergunto-me se os pagãos de hoje não
poderiam evoluir em relação aos pagãos seus antepassados. Pelo contrário, Chesterton
desafiava-os a imitarem-nos até ao fim, porque os pagãos de há muitos séculos,
que desenhavam caricaturas blasfemas, acabaram por se converter.
José Maria C.S. André
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