Há tempos, ouvi um historiador importante explicar, com eloquência de dados, que o pedido de perdão de João Paulo II durante o Jubileu do ano 2000 não fazia sentido, porque nem ele nem os Papas anteriores tinham a ver com os acontecimentos de que pedia desculpa. Nem sequer a Igreja estava implicada na generalidade daqueles actos, a maior parte passados há muitos séculos. Antes de pedir desculpa, João Paulo II (digo eu) devia ter telefonado para a faculdade: «Está lá? Podia-me passar ao Prof.? Daqui fala o Papa. Não lhe vou tirar muito tempo, é só para me esclarecer...» (evitava-se o tal pedido de perdão inapropriado).
Em Junho passado, o Papa Francisco pediu desculpa aos valdenses pelas violências do século XVI. A Assembleia das Igrejas Metodistas e Valdenses respondeu-lhe há pouco, por carta, que não podiam perdoar: eram outros tempos, outras pessoas, nenhum daqueles antepassados está vivo... apreciavam o gesto, mas não lhes dizia respeito.
Aliás, a carta não toca no assunto, mas é evidente que se passa o mesmo com as culpas dos valdenses do século XVI: nenhum está vivo, nem tem um pai que possa pedir desculpa por ele.
Há uma frase de Paulo VI (cuja festa litúrgica se celebra no dia 26 de Setembro) que ilumina a questão: «o Papa deve olhar o mundo através dos olhos de Cristo». Ora, o olhar de Cristo não tem prazo de validade.
Ser Papa não é comparável a ser líder, é ser pai universal. Compreendo que um historiador não encontre a árvore genealógica que liga um remoto bandido a um Papa que vive vários séculos depois, contudo o Papa reconhece-o imediatamente: é meu filho!
Um Presidente da República não pede desculpa a Deus e ao mundo pelas malfeitorias dos cidadãos nacionais, mas um Papa sente sobre si a culpa de todas as culpas de todos os homens, de todos os continentes, de há 20 séculos para cá. O historiador pode argumentar que essa gente nem sequer ia à Missa: o Papa responde que sente ainda mais culpa, porque eles faltavam à Missa. O historiador pode contrapor que eles até perseguiam os padres e maltratavam os cristãos: o Papa sentirá uma culpa ainda maior. Não conseguem chegar a acordo, porque não é fácil conciliar a objectividade do historiador com a subjectividade do olhar de Cristo.
«Nada do que é humano é alheio à Igreja», eis uma ideia forte do Concílio Vaticano II, afirmando um envolvimento universal que abarca tudo o que há de bom e de mau na vida dos homens. Sobretudo, essa misteriosa preocupação por todos, que converge no coração do Papa. Descobrir a Igreja é também encontrar-se com a dimensão desta paternidade, querida pelo próprio Deus, à medida de Deus.
Há gente muito boa que conhece a doutrina e esperaria uma atitude mais objectiva por parte dos Papas. Um Cristo que come com publicanos e pecadores parece-lhes demasiado ingénuo e voltam à insinuação do Evangelho, «se Ele soubesse quem O está a tocar»... Claro que este Cristo é ingénuo. Pelo menos no sentido etimológico da palavra, inocente, sincero, simples. (Igualmente na acepção brasileira de filho da escrava, se pensarmos que Nossa Senhora se apresentou ao Anjo como a serva de Deus).
O título comum de todos os Papas, desde S. Gregório Magno, no século VI, até hoje é «servus servorum Dei» (o servo dos servos de Deus). Não é só literatura ancestral, enraizada nos séculos; a vulnerabilidade do coração de um Papa é um mistério que merece um imenso respeito.
José Maria C.S. André
Spe Deus
27-IX-2015
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