É preciso falar com linguagem exata, defendeu D. Carlos Azevedo. A Igreja comemora o “centenário das aparições” mas, afinal, o conceito é teologicamente impreciso. Mais acessório, só o terço gigante
Estudei num colégio católico e era tradição ir a Fátima em maio. O ponto alto era a visita à loja de souvenirs, onde dávamos conta do stock de medalhinhas, terços e anéis que mudavam de cor consoante o estado de espírito (uma vez também trouxe uma Nossa Senhora que brilhava no escuro, um must-have naquela fase da vida em que decoramos o quarto com autocolantes fluorescentes).
Numa dessas visitas trouxe também um livro sobre a vida dos pastorinhos. Teria uns nove ou dez anos. Eram meia dúzia de páginas, mas a ideia de alguém da minha idade se poder dedicar de coração a rezar pelo bem do mundo, todos os dias, tocou-me. Não me ficou nada sobre o segredo, mas sim essa entrega dos três à oração para se tornarem melhores e ajudarem a reparar os males do mundo. Lembro-me de tentar rezar o terço todos os dias, para ser mais como eles, numa guerra muitas vezes perdida com o sono.
Por esse testemunho de entrega desinteressada, guardei sempre um carinho especial pela Jacinta e pelo Francisco, que agora vão ser santos, e por Lúcia. Nunca me tinha debruçado sobre os contornos teológicos do que se passou em Fátima e suspeito que a maioria dos 9 milhões de católicos em Portugal (segundo as últimas estimativas do Vaticano...) também não. Nas últimas semanas, porém, o assunto revelou-se complexo. D. Carlos Azevedo e o pe. Anselmo Borges, em diferentes entrevistas, fizeram questão de explicar que não foram aparições, mas visões.
O modo pareceu-me inusitado, para mais quando a Igreja comemora oficialmente o “centenário das aparições”. Basta abrir o site do santuário para dar de caras com a terminologia. “É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Uma aparição é algo objetivo. Uma experiência religiosa interior é outra realidade, é uma visão, o que não significa necessariamente um delírio, mas é subjetivo”, disse Anselmo Borges ao “Expresso”. “A presença de Maria não vem do céu por aí abaixo. Essas descrições são mais simples, mais imediatas, para entender o que é uma visão mística, mas precisamos de usar a linguagem exata para não cair no ridículo”, disse D. Carlos Azevedo ao “Público”, sublinhando que o que aconteceu em Fátima foram “visões imaginativas”. Noutra entrevista lembra que algumas pessoas ficaram escandalizadas quando, há anos, disse que Nossa Senhora não aprendeu português para falar com Lúcia... “Era para se compreender melhor que o diálogo com Deus se faz através de uma consciência interior, imaginativa, como diz o Papa Ratzinger.”
Tem havido várias negações do que aconteceu em Fátima mas, até ver, a Igreja ainda o reconhece. Confusa, e inspirada pelo pe. Gonçalo Portocarrero de Almada, que assinalou que Ratzinger, ao falar de visões, não disse que tinha sido tudo subjetivo, fui ler o que escreveu o papa emérito. O comentário teológico, publicado no ano 2000, está disponível no site do Vaticano e explica que a antropologia teológica distingue três formas de perceção ou visão: a visão pelos sentidos, a perceção interior e a visão espiritual.
No caso de Lourdes e Fátima, “não houve uma perceção externa normal dos sentidos”. Isto é bem evidente, diz Ratzinger, na visão do inferno pelos pastorinhos e pelo facto de esta e outras imagens terem sido captadas só por eles. Por outro lado, também não existe só uma visão intelectual sem imagens, o que seria a tal visão imaginativa.
Segundo Ratzinger, o que aconteceu em Fátima fica na categoria intermédia, “a perceção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível”. E isto “não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjetiva”, continua. “Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não sensível, o não visível aos sentidos: uma visão através dos ‘sentidos internos’. Trata-se de verdadeiros ‘objetos ‘ que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma.”
Portanto, uma aparição interior, que eles estavam disponíveis para acolher e traduziram em função da suas capacidades. Seja como for, também Ratzinger parecia concluir que isso não era o mais importante na análise das visões e do segredo de Fátima. “O que permanece é a exortação à oração como caminho para a ‘salvação das almas’ e, no mesmo sentido, o apelo à penitência e à conversão.” Fátima não é ensinada como um dogma, mas como um testemunho de fé, e é essa mensagem dos pastorinhos que toca. Vindo da Igreja, mais acessório do que esta intelectualização do fenómeno, talvez só o terço gigante que vai brilhar no escuro no santuário, no dia da chegada de Francisco.
Marta F. Reis in jornal i AQUI
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