Toda a gente devia ver um segmento do
“60 Minutos” que a SIC Notícias está a passar. Chama-se “The National Mood” e
tem como protagonista Frank Luntz, um profissional dos estudos de mercado e dos
grupos de discussões. Luntz juntou dezenas de americanos de todas a origens e
sensibilidades e só lhes pediu uma coisa: uma conversa civilizada sobre o
estado da América. O resultado foi dramático. As pessoas não se respeitaram,
falaram por cima umas das outras, insultaram-se, mostrando que só conseguem
pensar com frases à Twitter, esse instrumento de destruição da linguagem e da
perceção da realidade. Luntz faz isto há décadas e garante que nunca viu nada
assim. As pessoas estão mesmo a descer aos calabouços da barbárie. Porquê? Luntz
menciona três causas: a eleição de 2000, que criou um abismo que perdura, as
redes sociais e a falta de educação pura e dura. Vou concentrar-me nas duas
últimas.
As redes sociais estão de facto a
mudar para pior a forma como pensamos, como percecionamos a realidade empírica
e, acima de tudo, como lidamos moralmente com quem discorda de nós. Luntz deu
um exemplo paradigmático. Há 18 anos, aquando do impeachment de Clinton, ele
fez um grupo de discussão idêntico para o “60 minutos”. As diferenças falam por
si: apesar do potencial explosivo do tema, as pessoas falaram com calma, não se
interromperam, discutiram argumentos e não fizeram ataques ad hominem. O
contraste entre 1998 e 2016 é total. Seguindo a cultura do Twitter e do
Facebook, as pessoas hoje só sabem fazer duas coisas: diabolizar ou gozar com o
adversário; o outro lado ou é um mal absoluto que deve ser erradicado ou é uma
horda de tontos que deve ser caricaturada. Perdeu-se a capacidade para
“compreender”, que não é o mesmo que “apoiar”. A certa altura do debate, um
rapaz afirmou o seguinte: “Não voto Trump mas percebo porque é que muitas
pessoas gostam dele; contudo não digo nada porque sei que vou ser ostracizado.”
Não há melhor resumo da nossa atmosfera pós-verdade. Logo a seguir, um homem
negro constatou um facto: “Os negros são assassinados sobretudo por outros
negros...” Nem conseguiu acabar a frase, porque foi de imediato insultado ou
gozado por pessoas que vivem de facto na era pós-verdade: só veem o que querem
ver, só leem o querem ler, só vão buscar à net aquilo que confirma os seus
preconceitos. Não aceitam a autoridade dos factos.
Ficou ainda evidente outro ponto: não
há educação, não há maneiras, as pessoas dizem palavrões com grande facilidade.
Nas últimas décadas, aqueles que defendiam as boas maneiras foram rotulados de “reaças”;
aqueles que criticavam John Stewart por este usar fucking em cada frase foram
chamados “chatos”; aqueles que defendiam a autoridade do pai e do professor
perante as criancinhas foram apelidados de “autoritários”. Pois aqui está o
resultado desta cultura antiautoridade e contra as boas maneiras: as
criancinhas cresceram e já não se limitam a desrespeitar o professor e o pai,
desrespeitam a própria verdade factual e, acima de tudo, não sabem respeitar as
outras pessoas. Não há liberdade a jusante sem autoridade e respeito a
montante.
Henrique
Raposo no Semanário Expresso de
19.11.2016 (seleção de imagens ‘Spe Deus’)
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