A pobreza é um inimigo muito antigo, experiente e manhoso. Apesar de o desenvolvimento ter destruído a secular miséria endémica, ela ressurge em novas formas, permanecendo muito perigosa. Acima de tudo, inclui sempre subtilezas e ambiguidades que enganam muita gente. Por isso, várias das medidas para apoiar os necessitados, feitas nas melhores intenções, falham os objectivos, até agravando o sofrimento. Recentes discussões mostram a dificuldade.
As propostas de subida do salário mínimo são um bom exemplo. Os políticos gostam desse indicador porque é a única benesse barata. Aumentar pensões ou subsídios repercute-se dolorosamente nas contas públicas. Mas o Estado não gasta um cêntimo de salário mínimo, ficando com o mérito à borla. Quem suporta a despesa são empresas, boa parte delas pequenas e frágeis.
Qual o efeito dessa subida? Para os trabalhadores que permanecem, o resultado é óptimo. Mas que acontece aos que saem? Afinal o salário mínimo é a proibição legal de todos os empregos que paguem menos. Aumentá-lo destrói inevitavelmente postos de trabalho que, mesmo maus, ocupam e alimentam muita gente que dificilmente encontra alternativa. Os estudos mostram que os que perdem são os mais fragilizados, jovens, mulheres, desqualificados, etc. O impacto é pois complexo e os custos têm de ser considerados. Tudo isto recomenda que não se mexa no valor de ânimo leve. Mas no calor do debate não se pára para pensar.
Aqui junta-se outro elemento decisivo: a taxa de desemprego em Portugal das pessoas sem qualquer qualificação costumava ser a mais baixa de todos os escalões educativos, por vezes menos de metade do valor global. Desde 2009 ela tem subido mais do que todas as outras e está já quase dois pontos percentuais acima da média nacional. Impor rigidez legal nestas condições é ignorância criminosa.
A pobreza é um problema muito sério e profundo. Por isso, uma das coisas que mais espanta é a ligeireza com que tantos, cheios de preocupação e benevolência, tratam o tema. Reagem a quente, repetem chavões genéricos, insultam e atacam, mal se incomodando em olhar para a realidade.
Por exemplo, afirmar que a maioria dos pensionistas não são pobres levantou enorme celeuma. Isso só pode significar que há muita gente, mesmo séria, eminente e de boa fé, que acha que a maioria dos pensionistas é pobre. De onde tirou essa ideia? Certamente não foi do estudo cuidadoso da realidade. A União Europeia, através do serviço de estatística Eurostat, publica a taxa de pobreza dos pensionistas (At-risk-of-poverty rate for pensioners), números que parecem desconhecidos à maioria dos que falam no tema. Em 2004 os pensionistas pobres eram de 25,8% do total, bastante abaixo da maioria. Mas a taxa desceu acentuadamente desde então, sendo 15,8% em 2012. Isso é até bastante inferior à taxa de pobreza do total do país, 17,9%, o que indica que os pensionistas não são um grupo desprotegido.
Como podem estes números ser verdade considerando os cortes recentes? A resposta é óbvia se abandonarmos fúrias e estribilhos e, acima de tudo, pensarmos um pouco, condição difícil nos embates políticos. De facto, as reduções das prestações não têm atingido os escalões mais baixos, onde estão os verdadeiros pobres. Além disso, apoiado na sua pensão, esse grupo está mais imune aos dramas da recessão que afectam em cheio a população trabalhadora. Ninguém nega os enormes sofrimentos que a austeridade tem gerado aí, como em toda a classe média, a grande vítima desta crise. Mas, precisamente sendo classe média, não é justo considerá-la pobre.
Este é o pior dos truques do nosso velho e astuto inimigo. É fácil que a justa indignação pelo sofrimento justifique as maiores atoardas. Revoltadas pelo mal, muitas pessoas íntegras e benfazejas perdem a cabeça, cometendo erros e falhando o alvo, por pura ignorância. Pior, em vez de debater ideias, é fácil insultar, agredir, desprezar os que dizem a verdade. Porque verdade é algo que não abunda nos debates políticos, sobretudo acerca deste velho inimigo.
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